16/01/13

...e, de resto, pode fazer-se o que se quiser.

Veio há pouco tempo parar-me às mãos um pequeno ensaio moral de Robert Louis Stevenson chamado A Christmas sermon (“Um sermão de Natal”), de 1888. O ensaio de Stevenson assenta numa ideia cristã de moral positiva:
Não somos condenados por fazer mal, mas sim por não fazer bem; Cristo recusava a moral negativa; deves foi sempre a sua palavra, que utilizou em vez de não deves. 
No âmbito de uma moral revelada, bastaria a sua origem divina para justificar a asserção de que é pela positiva que se devem definir as propostas morais – bastaria dizer que é assim, porque foi isso que Cristo disse. Mas Stevenson apresenta também para essa asserção uma justificação não propriamente moral, ao que consigo entender, mas antes de ordem psicológica:
Fazer a nossa ideia de moral centrar-se em atos proibidos é corromper a imaginação e introduzir no nosso julgamento do próximo um elemento secreto de prazer. Se uma coisa está para nós errada, não nos devemos demorar-nos na reflexão sobre ela, ou depressa acabaremos por refletir sobre ela com prazer invertido.
Deixem-me suspender um bocadinho o texto de Stevenson, para dar uma voltinha por questões que me levanta a moral positiva, em várias formulações. Uma das mais famosas é a formulação crística muitas vezes chamada a Regra de Ouro*:
Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas. (Mateus 7:12)
Assim como quereis que os homens vos façam, do mesmo modo lhes fazei vós também. (Lucas 6:31) 
Duma forma talvez abusiva, chamo-lhe às vezes a ideologia da missão: se X é para mim a verdade (ideal epistémico), o bem (ideal moral) e a felicidade (ideal psíquico), que mais posso desejar senão dar aos outros X, que é o que eu desejaria, sendo como sou, que me fizessem a mim, se não fosse como sou?
Há muito que me parece (e a muitas outras pessoas) que fazer aos outros o que quero que me façam a mim é fundamentalmente errado, porque não sei se os outros querem que eu lhes faça o que eu quero que me façam a mim. Pode argumentar-se, é claro, que o verdadeiro problema não é querer alargar a todos uma crença ou um comportamento, mas sim a maneira como se o faz; que, sem assimetrias de poder e sem se impor nada, não há mal em que se proponha apenas aos outros o que se acha verdadeiro, bom e são. É certo. Mas a regra da moral positiva, pelo menos na sua versão mais comum, não é “propõe aos outros o que queres que te proponham a ti”, mas sim “faz aos outros o que queres que te façam a ti” e é aí que começam as minhas dúvidas sobre ela…
Evidentemente, e como foi já também muitas postulado, vezes posso aceitar que deva fazer aos outros o que quero que me façam a mim, se tiver indicação clara de que é isso que os outros querem que eu lhes faça, mas, nesse caso, o princípio moral em questão passa a ser um caso particular de outro princípio muito diferente de moral positiva: faz aos outros o que eles querem que tu lhes faças.
É uma regra muito melhor, porque desloca o eixo moral do mesmo para o outro: já não posso fazer ao outro o que eu gostava que me fizessem a mim, mas que o outro não quer que eu lhe faça. Mas não faz desaparecer todos os problemas: uma moral cujo eixo é o querer, seja ele o meu (do agente) ou o do outro (do alvo da ação), continua a ser uma moral em que falta à ação uma causa válida (que alguém queira alguma coisa tem pouco valor ético) e que é, por definição, indiscutível, no sentido primeiro da palavra – porque… como se discute um querer? Uma proposta moral sólida deve assentar, na minha opinião, em algo mais fundamental e mais comunicável que o querer.
Mas voltemos a Stevenson. Uma ideia central no sermão é que devemos deixar-nos de moralismos, como ele diz; que não devemos fazer do mal que os outros fazem o centro das nossas preocupações:
Há uma ideia espalhada entre pessoas morais de que devem tornar os outros bons. Há uma pessoa que devo tornar boa: eu próprio. Mas o meu dever para com o meu próximo é expresso de forma mais adequada se disser que tenho de o tornar feliz – se conseguir.
Se a moral positiva de Stevenson fosse “fazer aos outros o que queremos que eles nos façam a nós”, ficaríamos a saber que ele não queria, obviamente, que fizessem dele um homem bom, mas antes que fizessem dele um homem feliz – pois que é isso que acha que se deve fazer aos outros. A moral de Stevenson, porém, não tem muito a ver com o princípio discutido acima – é uma moral positiva, porque não se centra na interdição e sim no dever de agir; mas não é relativa, porque este dever não depende da vontade de cada um, nem de nenhum outro critério relativo: é o dever absoluto de fazer os outros felizes. No fundo, creio entender, sob a forma nem sempre muito transparente do ensaio, que, embora não lhe chame assim e pareça até desvalorizar a ideia de virtude, é uma ética da virtude que Stevenson propõe, mas uma virtude não “moralista”, a virtude de uma alegre bonomia:
Gentileza e alegria vêm antes de qualquer moral; são os deveres perfeitos.
Não me parece que seja suficiente, como proposta moral, mas porque não?

***
Outra lei moral de base que também me veio parar às mãos recentemente, e que considero mais correta, é a que é proposta na novela Gente e gatunos de Vila Cardamomo (Folk og røvere i Kardemommeby, 1955), um clássico infantil do norueguês Thorbjørn Egner. A única lei de Vila Cardamomo é a seguinte:
Não se deve incomodar os outros,
deve ser-se bom e amável
e, de resto, pode fazer-se o que se quiser.
A “lei de Cardamomo” é apresentada numa canção que vos deixo aqui, no norueguês original. Na minha opinião, ganharia bastante, do ponto de vista ético, com a supressão do segundo verso. Mas isso estragava a canção toda...


(Para uma formulação esteticamente interessante de um princípio geral e absoluto de moral negativa, ver uma das primeiras páginas desta Travessa.)
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* Uma formação curiosa é que se atribui ao químico e bioquímico Linus Carl Pauling (segundo a Wikipédia, numa palestra no Monterey Peninsula College, na Califórnia, por volta de 1961, mas não é citada fonte para essa informação…):
Tenho uma coisa a que chamo a minha Regra de Ouro. É mais ou menos assim: “Faz aos outro 25% melhor do que esperas que eles te façam”… Os 25% são para a margem de erro.
Por divertida que seja a formulação, se aceitarmos as críticas feitas a este princípio moral, ela só vem tornar a regra… 25% mais criticável!

3 comentários:

Helena Araújo disse...

Essa de fazer aos outros o que queremos que eles nos façam a nós pode dar muita confusão.
Mas fazer aos outros o que pensamos que eles querem lembra-me aquele casal que passou uma vida inteira a comer feijoada, que ambos detestavam, porque ela achava que ele adorava, e ele achava que era o prato preferido dela...

E depois, essa regra teria um corolário kantiano muito engraçado: "Quer sempre de tal modo que o teu desejo possa vir a ser princípio de uma lei universal."

Vítor Lindegaard disse...

Exatamente, Helena!

Vítor Lindegaard disse...

PRP: É inadmissível, eu sei - agora que ando em arrumações do meu Outlook, fui encontrar o seu comentário que lá tinha ficado esquecido desde janeiro. Peço muita desculpa. Fui à procura de Um brinde à frustração da condição humana e diz-me Blogger que foi entretanto apagado...