08/10/13

Mas então… Se é assim nestes casos, como será nos outros?

Eis (a minha tradução de) um título de artigo do [Daily] Mail Online:
 “A “superlíngua” da idade do gelo que os Europeus falavam há 15.000 – e que ainda compreendemos hoje[1]
Não sei qual é a vossa reação, mas eu fico de pé atrás quando vejo títulos assim. E é isso que se deve fazer. Não vou agora fazer uma crítica do estudo que este artigo refere, até porque não é sobre uma área da minha especialidade, mas posso indicar-vos, se por acaso vos interessar esta área de estudos, algumas críticas que apontam para graves erros teóricos e metodológicos, aqui e aqui. Aquilo que quero tratar aqui é da maneira como os resultados de estudos académicos são divulgados nos jornais e revistas – e, sobretudo, em certos jornais e revistas. Neste caso, por exemplo, como diz Piotr Gąsiorowski no seu blogue Language Evolution, “parece ridículo e é ridículo”. Evidentemente, por muitas falhas que o estudo tenha, não poderia afirmar uma coisa destas[2]. “Mas pronto”, continua Gąsiorowski, “jornalistas são jornalistas. Em particular, os jornalistas de ciência atuais, com falta de educação e de sentido crítico, compreendem e relatam sempre mal pelo menos 60% do que encontram num jornal académico.” É muito pessimismo, não é? Afinal de contas, o Daily Mail é o Daily Mail, mas nem todos os jornais são o Daily Mail. Neste caso, podemos perguntar-nos se o jornalista (não identificado, o que também é revelador), leu o artigo…

Mas enfim, para que perco eu tempo com isto? A questão é que, no Daily Mail ou seja lá onde for, estas coisas passam. As pessoas leem e acreditam. E se isto é assim nos temas que domino, deve ser igual nos que não domino, não é? Uma pessoa com formação na área apercebe-se logo de que alguma coisa está mal em artigos deste tipo. Mas, se não tiver essa formação? Que capacidade crítica tenho eu relativamente a artigos de divulgação de estudos de física ou biologia? É claro, não levo muito a sério quando vejo que “o nosso ADN pode causar padrões perturbadores do vácuo, produzindo assim wormholes magnetizados”[3], mas, muitas vezes, não deteto quais podem ser as fraquezas – ou mesmo erros óbvios – de estudos descritos em artigos de jornal. Nem me compete, obviamente. Acho que é o jornalista que deve dar conta disso.

Deixem-me só dar mais um exemplo na área da língua: o artigo (traduzo eu) “Mais devagar! Porque é que algumas línguas soam tão rápidas[4], sobre um estudo que conclui que há línguas em que as palavras têm, em média, mais sílabas que noutras e que as línguas que têm mais informação semântica em cada sílaba são faladas mais devagar que as línguas em que cada sílaba tem menos informação, de modo que demora o mesmo tempo a dizer a mesma coisa em todas as línguas. É interessante, acho eu, mas tem muito que se lhe diga… E o artigo do Time não refere sequer as fraquezas reconhecidas pelos autores no próprio artigo (o estudo é feito com leituras em voz alta de textos, o que resulta normalmente num ritmo muito diferente da fala natural[5]), e menos ainda outras, graves todas elas, que vêm facilmente à cabeça de quem o lê: porquê eliminar pausas das gravações?; não há controlo de variação em diversas situações de uso da língua; não há controlo da variação dialetal e socioletal; o conjunto de línguas analisado é não só muito pequeno como pouco diversificado; é difícil – ou talvez impossível – definir densidade semântica média por sílaba, pelo que a classificação das línguas é, no mínimo, altamente discutível, etc.

É evidente para muita gente (mas há também muita para quem não o é...), que, por princípio, não se deve aceitar apresentação de resultados só, sem descrição dos estudos que os produzem, sobretudo quando tão-pouco há referência a estudos concretos (“cientistas afirmam que”). E creio que não é demais exigir dos artigos de divulgação científica, sejam lá em que área for, referência integral e correta do estudo ou estudos referidos, com link para eles, se possível[6]; e uma descrição rigorosa dos mesmos, forçosamente feita por alguém que os tenha lido e compreendido. Agora, creio que estes artigos devem também incluir uma listagem de eventuais problemas de metodologia e de críticas, de outras pessoas ou do próprio jornalista – para que os leitores não especialistas percebam que há sempre questões a levantar, e, dentro da medida do possível, vejam de que tipo podem ser e se habituem a levantar questões eles próprios. É pedir muito?

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[1] Autor desconhecido, “'Ershver tooni monhrr!' In other words, hey, can you give me a hand! The ice age 'superlanguage' Europeans spoke 15,000 years ago - and we can still understand today”, Mail Online, Science, 7 de Maio de 2013
[2] O principal autor do estudo parece, contudo, ter afirmado coisas muitos estranhas na entrevista que deu ao jornal: “Se estivéssemos sentados à volta de uma fogueira, podíamos ter uma conversa básica” – ??? Ou a entrevista também foi mal entendida e não foi isso que ele disse?
[3] Eh eh eh, tinha de arranjar maneira de pôr esta num texto de blogue. Divirtam-se aqui (muito!) com grandes woomeisters!
[4] Jeffrey Kluger, “Slow Down! Why Some Languages Sound So Fast”, Time em linha, 8 de Setembro de 2011
[5] Trata-se, na minha opinião, de uma enorme deficiência deste estudo, por muito que a metodologia se possa defender em nome das condições de reprodutibilidade da experiência e da igualdade de condições para todos os discursos analisados.
[6] Não sei se há quem pense que demasiado academicismo assusta os leitores ou os distrai, mas não creio, se for bem feito. É sabido que, para muitos deles, esta referência não tem interesse. Mas é prova de seriedade no trabalho e informação importante para a minoria que queira mesmo verificar os estudos.

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