É certo que mulher não é um género de música, mas é um género na música, se faz sentido traduzir o trocadilho de Sara Savage no artigo “No Pants? No problem!”, publicado no Trip Magazine de Abril deste ano. “Mulher” é um género [gender, não genre] e um género bastante limitador, por tal sinal”, continua ela. E apresenta as estatística da radiofusão na Austrália, relativas apenas a vocalistas, que são significativas: “das 2.000 canções mais tocadas (…), 82% tinham homens a cantar, e só 18% eram cantadas por mulheres”. Ajustadas para o número de passagens na rádio, “as estatísticas continuavam a dar conta de uns avassaladores 76% de homens contra 24% de mulheres vocalistas”.
Não tenho estatísticas completas para vos dar, mas os números estão à disposição de quem queira gastar meia dúzia de minutos à procura deles – e pendem sempre com grande desequilíbrio para o lado dos homens! Já uma vez aqui disse (perdoem-me a autocitação, mas poupa-vos a leitura de um texto sobre canções de voz feminina escritas por homens):
Joni Mitchell queixou-se, no discurso que fez quando foi nomeada para o Rock’n’Roll Hall of Fame, de que, no princípio dos anos sessenta, era extremamente difícil para uma mulher entrar no mundo da canção, nomeadamente arranjar um contrato com uma editora e gravar um disco. Não sei se isto vos surpreende ou não, mas o facto é que as mulheres sempre foram uma minoria bastante minoritária no mundo da canção. Não vos posso dar números rigorosos, porque não os tenho, mas, nas poucas listas que tenho conseguido encontrar de autores e compositores de canções (normalmente do século XX – e com um peso grande dos primeiros 60 anos, é certo…), as mulheres são sempre à volta de 10%. É, aliás, também de 10% a taxa de feminilidade da minha discoteca, na música dita popular (incluindo rock, pop, soul, folk, etc., etc.) – e eu sou uma pessoa que me interesso por autoras compositoras.... Se, por exemplo, forem ao All Music Guide, e derem uma vista de olhos na lista dos 92 singers-songwriters que eles consideram mais importantes (agora já sobretudo da segunda metade do séc. XX), só 16 são mulheres – sendo que várias delas são, de facto, só intérpretes ou principalmente intérpretes… Noutro dia, vi uma lista dessas que há dos “melhores álbuns de sempre”, só que esta feita a partir de uma compilação de dezenas de outras listas do mesmo tipo, e, em 100, há 2 (!) discos escritos por mulheres! […] A percentagem das mulheres compositoras de música deve ser ainda mais baixa. Dou-me conta, por exemplo, que na minha discoteca (que está muito longe de ser exemplar e que tampouco é extensa por aí além, mas mesmo assim…), não tenho uma única obra de música dita “erudita”, seja lá de que período for, escrita por uma mulher; e as de jazz contam-se pelos dedos de uma mão…Não fui ver como se alteraram (desde 2007, que foi quando escrevi o texto que cito atrás) os dados que refiro, a não ser na minha discoteca, e, aí, as coisas melhoraram: na minha coleção de música popular, de 1716 artistas, 294 são mulheres, ou seja 17% do total. Na música escrita, tenho agora obras de Lili Boulanger, Hildegarde von Bingen, Wendy Carlos (n. 1939) e Else Marie Pade (n. 1924). Mas mesmo assim…
Com estes dois nomes, Carlos e Pade, eis-nos de volta ao título e ao artigo referido no primeiro parágrafo: Pioneiras da eletrónica. Pode refletir os meus gostos, mas pode refletir mais que isso. É-me impossível afirmar com certeza que a percentagem de compositoras é maior na música eletrónica, mas é inegável que é uma área (penso que também não se lhe pode chamar género…) em cuja génese há várias mulheres incontornáveis. Além das duas já mencionadas, posso também referir, por exemplo, Daphne Oram (1925-2003); Éliane Radigue (n.1932) e Delia Derbyshire (1937-2001). Porquê? Poderia parecer que, segundo a atribuição tradicional de papéis de género, a música eletrónica seria, precisamente, uma área de que as mulheres estariam praticamente ausentes, porque uma grande parte do trabalho pioneiro nesta área assenta na experimentação com construção de instrumentos e técnicas de produção ou manipulação de sons, ou seja, eletrónica no sentido técnico e não no sentido musical; e que não creio que esta fosse, dos anos trinta aos anos sessenta do século passado, uma área especialmente aberta a mulheres.
Além da interrogação do último parágrafo, deixo-vos, para ilustrar a conversa, uma peça de uma das pioneiras da música eletrónica: Music of the spheres, da compositora americana-alemã Johanna Beyer (1888-1944), composta em 1938 e gravada pela primeira vez em 1977. Segundo as notas do disco em que foi incluída a peça, Beyer compôs Music of the spheres como interlúdio entre duas secções de Status Quo, uma ópera (?) de cariz político. A obra é para “três instrumentos elétricos ou cordas” com tambor de fricção (lion’s roar) e triângulo” e é “uma das primeiras peças compostas de música eletrónica”. Imaginem como teria sido recebida em 1938...
Johanna M. Beyer. Music Of The Spheres (1938) / The Electric Weasel Ensemble
[Música das esferas é o nome de várias peças musicais e é também como muitas vezes se refere a ideia pitagórica de uma harmonia inaudível produzida pelas órbitas dos astros. Tenho um pasta chamada “Música das esferas”, com informação que fui recolhendo para escrever um texto para a Travessa..., de modo que é natural que um dia aqui apareça alguma coisa sobre o tema…]
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* Traduzo eu todas as citações do texto.
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