[Encontro de travessas, é o que é: fui dar com um poema que escrevi quando morava num rés do chão da Travessa de S. Pedro, no Bairro Alto, em 1995, e achei que ficava aqui bem na Travessa do Fala-Só. Numa certa perspetiva, parece impossível que tenham passado já quase 20 anos; noutra perspetiva, parece que 20 anos é distância pouca para medir a diferença entre a minha vida de agora e a minha vida daquela altura. Mas a minha vida não interessa a quase ninguém e se ponho aqui o poema é porque lhe achei graça, que é coisa que raramente acho aos poemas de há quase vinte anos.]
não sou
nem bom
nem mau
quando arrumo no guarda-fato
os casacos que andaram semanas
espalhados pelas cadeiras da sala e do quarto
nem bom
nem mau
quando me sento como agora a escrever
nem bom
nem mau
quando fumo à janela
o último cigarro da noite
acho eu
quando é que sou
bom? quando é
que sou
mau?
sou bom se desisto
e mau se me enraivo?
bom se adormeço cansado
mau se não me deixa dormir
a vontade de um sexo
outro que não o meu?
bom se sorrio à manhã
mau se maldigo inocência ou paixão?
se sou bom
ou sou mau
para quem
o sou?
louvada seja esta e toda a solidão:
se me pesa a dúvida
sobre como bem e mal se equilibram
nos meus gestos e nas minhas vontades
vem logo ela sossegar-me:
sejam bem e mal o que forem
não os faço senão a mim
– quem poderá acusar-me
de arrumar os casacos espalhados pela casa
de fumar à janela o último cigarro
de me sentar como agora a escrever?
10 de maio de 1995
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