Charro
Há um caso conhecido de contribuição do híndi para o vocabulário dos amadores de Cannabis sativa em Portugal. Ganza vem obviamente do híndi ganja, गांजा, termo cujo uso nas línguas europeias está documentado há séculos, com o seu significado original, isto é, referindo apenas o produto. Os outros usos em português moderno, para significar «uma dose de Cannabis» («fumar uma ganza») ou o seu efeito («estar com uma grande ganza») surgem, obviamente, por extensão do significado original.
Menos óbvia é a etimologia de charro, mas parece-me provável que também tenha origem indiana — embora, como ganja, deva ter chegado ao português pelo inglês, língua de comunicação na Índia e língua franca do quem, nos anos sessenta, a divulgou no Ocidente—e à Cannabis... Muitos amadores de Cannabis anglófonos conhecem—sobretudo se tiverem viajado na Índia, mas não só—o termo inglês churrus (pronunciado [tchâras], mais ou menos), ou as suas variantes charras ou charas, que designa um tipo de haxixe (do híndi चरस, urdu چرس). É bem possível que o termo, originalmente um nome não contável como haxixe, imediatamente se tenha tornado contável em português, passando a designar não o produto, mas os cigarros em que ele se consome — possivelmente por analogia com cigarro, precisamente, a que também pode ter ido buscar o rr «longo».
Insumo
Quando faz falta uma palavra, a língua arranja-a logo. Ou se cunha uma palavra nova ou se importa uma palavra de outra língua. Acho que muitos falantes do português sentiam e sentem muitas vezes dificuldades em traduzir o inglês input. É certo que, quando se traduz, não é em palavras isoladas que se deve pensar, e sim em frases completas, mas todos, mesmo os melhores tradutores, se deixam apanhar na armadilha de emperrar em palavras concretas.
Traduzo as definições de input do Cambridge em linha: «aquilo que se introduz num sistema, organização ou máquina (como energia, dinheiro ou informação) para que este/a possa funcionar; ajuda, ideias ou conhecimento que alguém fornece a um projeto, organização, etc.; um recurso, como sejam materiais ou mão-de-obra, que entra na produção de qualquer coisa e cujo custo tem influência nos lucros».
Se procurarem no dicionário técnico da União Europeia, depois de escolher EN como língua de partida e PT como língua de chegada, obterão 513 entradas com a palavra e as suas correspondentes em português em cada caso. Input pode traduzir-se por entrada, fluxo, meio, fator de produção, aporte, contributo e seguramente muito mais, consoante o contexto em que ocorra. Ah, e por insumo, claro!
Lido muito com a palavra insumo há cerca de 20 anos. Em agricultura, por exemplo, fala-se muito de insumos agrícolas para referir sementes, adubos pesticidas e herbicidas, alfaias e maquinaria, tudo aquilo que é necessário para produzir. Mas pode falar-se de insumos para qualquer atividade produtiva. Pessoalmente, uso a palavra apenas para referir coisas materiais, mas há quem lhe dê um uso mais vasto. Por exemplo, eu nunca diria “insumos para a elaboração de um relatório” (nesse caso, usaria contributos), mas há quem o faça.
Tenho quase de certeza de que o termo surgiu simplesmente para traduzir o inglês input. Tenho também quase a certeza de que surgiu no Brasil e que foi importado do castelhano, onde se terá formado já há mais tempo como deverbal de insumir, palavra que não importámos (ver aqui). Depois, do português brasileiro, a palavra espalhou-se rapidamente, sendo agora comum também noutras variantes. Eu conheço-a sobretudo de Moçambique, mas o Porto Editora, por exemplo, acolhe a palavra como termo de economia, sem indicar que é brasileirismo ou moçambicanismo. O mesmo o Priberam.
Uma coisa é certa: gostemos ou não dela, é, como se costuma dizer, uma palavra bem formada. Podia ter sido cunhada na nossa língua e segue os preceitos clássicos da «boa formação» de palavras: tem origem latina e tem familiares há muito residentes na nossa língua, como consumo, consumir, eximir, prémio, pronto, presunção, redimir, resumo, resumir, subsumir, etc., etc., todas elas com origem no emere latino, «tomar, obter», ou em sumere, variante de subemere.
Sótão
Mostrava-me um amigo meu, no outro dia, uma foto de uma placa anunciando um restaurante chamado O Sótão na cave de um edifício. Eu percebo a piada da foto, claro, mas, pensando bem na palavra, mais surpreendente que um sótão na cave é que sótão não signifique mesmo cave, como se poderia esperar.
Em castelhano, sótano significa «cave» e o cognato italiano, sottano, é expressão regional para designar uma habitação térrea pobre, também conhecida como basso. Não parece haver consenso quanto à etimologia de sótão: uns propõem uma forma latina não atestada, *subtānu-; outros outra forma latina, subtulu-, que teria dado uma forma intermédia sótalo em castelhano. Mas, seja como for, o significado etimológico é sempre «o que está debaixo; a parte de baixo»—o que é patente nos cognatos castelhano e italiano. A explicação que se costuma dar para a deriva de sentido do termo português é que o sótão está debaixo do telhado, mas é uma explicação convincente, sobretudo quando não se aplica aos cognatos nas línguas próximas?
Uma outra explicação poderia ser (isto é puramente especulativo, como muitas propostas de explicação de evoluções semânticas—sou só eu a pensar em voz alta, como se costuma dizer) que o termo, originalmente designando a cave, tivesse ganho um sentido de «arrecadação», que passou a aplicar-se independentemente da situação da arrecadação no edifício e que depois de especializou nos espaços usados para esse fim na parte superior das casas.
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