Apareceu-me no outro dia, num texto de que estava a fazer uma revisão, a palavra chamarisco. Tendo em conta o tipo de texto que era (um manual para associações de pequenas e médias empresas), tratava-se com certeza de um erro. Mas podia ter sido uma inspirada criação: se chamariz é “engodo para pássaros” e “engodo, em sentido figurativo”; e se isco é “engodo para peixes” e também “engodo, em sentido figurativo”, então chamarisco é duplo engodo e duplamente figurativo. O ideal, provavelmente, para a caça ao basilisco…
Chamarisco, se não fosse um erro, seria um neologismo de um tipo chamado portmanteau word em inglês, mot-valise em francês e parola-macedonia em italiano. Durante algum tempo, cheguei a pensar que era boa ideia adoptar a expressão italiana, por mais próxima da lógica do português, em vez de usar a expressão inglesa ou a expressão francesa que tanto via usar na nossa língua. Mas acabei por adoptar a expressão amálgama, que entretanto se impôs – e está muito bem assim.
Muitas destas palavras são de grande utilidade, mesmo que não sejam inventadas na nossa língua. Adaptámos sem hesitar amálgamas criadas noutras línguas, umas mais abreviadas (modem, codec, motel...), outras menos (informática, internauta...) e estamos em vias de adoptar outras, como cantautor e digiteca. E podíamos pensar em adoptar ainda mais, mesmo que, para as adoptar, tenhamos de as adaptar.
A maneira mais comum (mas não a única, note-se) de fazer amálgamas é aglutinar duas palavras do mesmo tipo (dois nomes, dois adjectivos, dois verbos...) colando-os nos sons comuns. Às vezes, a sutura realizada noutra língua fica impecável em português, como em glocal, que é aquilo que é ao mesmo tempo global e local (boa palavra!), mas, às vezes, para funcionar bem, a colagem não pode ser demasiado invisível. Por exemplo: os franceses inventaram a palavra adulescent, mistura de adolescent e adulte, que é palavra de utilidade suficiente para merecer ser adaptada ao português, mas como em português o u e o átono se pronunciam da mesma maneira, acho que teria de transformar-se em adultescente, para evitar confusões na oralidade…
Outra maneira de fazer amálgamas é transformar em prefixo ou sufixo uma parte de uma palavra, como quando se usou o -burger de hamburger para fazer cheeseburger. Um exemplo que se costuma dar em inglês ou francês é também o -thon de marathon, “maratona”, em telethon, uma maratona televisiva para angariar fundos para uma causa qualquer. É curioso que, em português, teletona não existe, mas os brasileiros usam (só que sem acento no o) a palavra espanhola teleton. Deve haver alguma coisa em teletona que não soa bem em português… O que será? Já quando se trata de adaptar o inglês walkathon, uma longa caminhada também para angariar fundos, parece que marchatona surge como proposta natural, e encontrei até uma ocorrência (já não é chita…) desta palavra em Google.
Outra maneira de fazer desta salada lexical é agarrar num elemento de formação de uma palavra e aplicá-lo a outras a que ela até aí não se aplicava, como nos casos conhecidos de workaholic e chocoholic em inglês, palavras que se começaram já a espalhar por várias línguas, em versões adaptadas. É interessante constatar o que se está a passar com o aportuguesamento destas palavras a partir de uma pesquisa simples em Google (os números que dou agora dizem respeito ao total das ocorrências das formas masculinas, femininas, singulares e plurais das palavras a o4-11-09 e devem considerar-se ligeiramente inflacionados, porque não fui controlar as ocorrências uma a uma – pode bem haver hits duplos ou triplos no total de hits que Google assinala – e dou números aproximados, porque o tal de ocorrências pode diferir em duas pesquisas com um intervalo de tempo relativamente curto entre elas): trabalhólico aparece cerca de 250 vezes e trabalhólatra cerca de 300 vezes. Não me podem citar nisto, porque não analisei as ocorrências em pormenor, mas, à primeira vista, parece que o uso de trabalhólico e trabalhólatra depende não tanto do grau de purismo dos utentes do neologismo, mas antes (como seria de esperar, aliás…) de serem ou não falantes de português do Brasil: os brasileiros, que dizem naturalmente alcoólatra, preferem trabalhólatra; os não brasileiros, que usam mais a forma criticada alcóolico, usam mais o neologismo trabalhólico. O que é curioso é que não encontro nem uma (!) ocorrência em Google de uma forma que a mim me pareceria natural, trabalhómano… Quanto a chocoólico, a taxa de ocorrência é tão grande que nenhum dicionário deveria hesitar em incluir a palavra na sua próxima edição: cerca de 19 000 ocorrências! Está bem que há um livro com esse nome e que, às vezes, a palavra não significa “viciado em chocolate” («uma cerveja chocoólica»), mas, mesmo assim, já é claramente uma palavra da língua… E mais palavra da língua é chocólatra, que tem direito a definição em dicionários online e cerca de 200 000 ocorrências em Google! Já chocoólatra é palavra com menos fortuna (cerca de 800 ocorrências apenas…) e só vi 3 ocorrências de chocolómanos, mas isso eu percebo, porque é palavra feiota…
Há países em que existe alguma tradição de criar neologismos deste tipo para resistir à importação de palavras estrangeiras. Eu proponho que se faça o mesmo em português, mas só pelo prazer de o fazer, notem bem, que eu não sou muito – ou não sou mesmos nada, seja – de purismos nacionalistas... Agora, com arte e ponderação. Não basta importar, de qualquer maneira. Não podemos, por exemplo, seguir literalmente o exemplo dos quebequenses, que chamam clavardage ao chat (de clavier e bavardage), porque teclersa é uma mistura francamente estúpida de teclado com conversa… Aliás, para o chat o melhor aportuguesamento nem é uma amálgama, o melhor é chamar-lhe simplesmente conversa de chat…cha… conversa de tchatcha, precisamente! Uma palavra como digitanso, porém, parece que fica bem para designar o que chama em inglês um technopeasant… E minhocultura é uma excelente alternativa bem portuguesa a vermicompostagem, que é uma importação directa doutros idiomas...
Que grande sal(s)ada… Pois, isto de neologismos é complicado. Noutro dia, vi no Ciberdúvidas a discussão do neologismo volunturismo, para designar “iniciativas que têm como objectivo unir o turismo solidário/sustentável/comunitário ao voluntariado”. A pessoa que colocava a dúvida dizia que a palavra já existia, mas queria saber se podia usar o neologismo em documentos oficiais. O consultor do Ciberdúvidas, por muito que admitisse que a palavra era “foneticamente aceitável”, não gostava dela, e é um direito que ele tem. Dizia ele que “do ponto de vista semântico, [este vocábulo] poderá ser desagradável porque sugere um trocadilho em que uma vogal é trocada por outra: volunt/a/rismo versus volunt/u/rismo” e que “contém duas ideias que são contraditórias: o exercício abnegado da vontade e o turismo, que sugere desprendimento e prazer pessoal”. Eu digo que é estranho chamar contradição a formas novas de encarar as viagens de férias (em que o prazer pessoal e o exercício abnegado da vontade não se anulem, precisamente). E aproveito para propor que quem ache que não se deve passar férias a trabalhar com miúdos da rua em Maputo se chame um defensor do conservaturismo. Já que estamos em maré de amálgamas relacionadas com turismo, proponho aventurismo para substituir o agora tão popular “turismo de aventura”. Parece-vos bem, ou acham que a segurança e o conforto que o turismo normalmente pressupõe são incompatíveis com o risco da aventura? [Chamo ao tom deste texto brincar a sério, não sabendo bem se me faço assim mal entender… Mas asseguro-vos que o texto quer mesmo dizer o que quer dizer...]
Uma palavra nova não tem de ser útil só para designar melhor o mal designado ou designar, ponto, o que tem falta de designação. Pode ser útil para, em vez de designar, descongestionar, desafiar, trocar as voltas ao discurso. Um dos campeões dos neologismos brincalhões era O’Neill, esse Alexandre grande da nossa poesia. Uma vez, fiz um levantamento de neologismos na obra de O’Neill e encontrei cerca de 200 palavras. Muitos deles eram amálgamas maravilhosas e deixo aqui meia dúzia delas a fechar com graça um texto que pouco a tem. Que passem os dicionários a registar, se fazem favor, coitarado, ejaculatra, màfrarrico, maravirilhas, perikitsch, pestanítido, rastejantraseiro, resmunguarda e tocantar. [Esta última palavra, como é uma amálgama de confecção mais óbvia, foi inventada por muita gente ao mesmo tempo, em português e espanhol. Uma pesquisa simples na net mostrar-vos-á utilizações do verbo tocantar por pessoas com uma probabilidade por assim dizer nula de conhecerem o texto de O’Neill onde ele o usa. Razão de sobra, portanto, para se a adoptar. Além disso, poderiam designar-se os cantautores que tocantam como tocantautores, não é verdade?]
[Já agora, como O’Neill não se limitava a brincar na sua língua-mãe, que passem também a figurar nos dicionários franceses politichien e portugueux, duas palavras úteis para designar tipos de pessoas que, por acaso, existem mesmo…]
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