Foi em Sucre, na Bolívia, em 1999 ou 2000, não me lembro bem. A Karen e eu tínhamos sido convidados para jantar em casa de um casal amigo, ela chilena e ele dinamarquês, e havia mais dois convidados, ambos bolivianos e colegas de trabalho do nosso anfitrião dinamarquês. Depois do jantar, a conversa foi parar ao tema do desenvolvimento, como não podia deixar de ser. Tirante a minha pessoa, eram todos técnicos de cooperação e esta gente, mesmo nas horas vagas, fala sempre de desenvolvimento, de tão a peito que levam o seu trabalho.
“O trabalho de desenvolvimento”, disse a certa altura um dos bolivianos, “é como o trabalho político – bem poucos frutos dá. Tem contribuído mais para a melhoria da vida das pessoas o avanço da medicina e da ciência em geral do que todo o trabalho político e de desenvolvimento.”
O senhor, ex-militante da esquerda boliviana, era o que se chama um desiludido da política. Eu não. Sou um moralista e, por isso, continuava – e continuo – a acreditar no trabalho político como maneira de melhorar o mundo. E reagi, claro, a uma tão radical descrença na política – mais do que a uma tão radical apologia da ciência redentora. Não me lembro de como argumentei, mas sou capaz de ter ido ao ponto de dizer que, sem aumento da justiça e da igualdade, os outros progressos todos deixam muito a desejar, porque nada nos garante que sejam distribuídos equitativamente.
Não é que tenha, desde essa altura, mudado radicalmente de opinião. Mas as muitas conversas que tenho tido ultimamente mais ou menos directamente relacionadas com este tema levaram-me a escrever este texto, como forma de reavaliar a minha própria posição sobre como se equilibram moral e conhecimento científico na melhoria do mundo.
Numa entrevista que dá a reddit.com (transcrição aqui), Noam Chomsky diz a certa altura o seguinte, numa resposta sobre o que pensa do movimento anarquista norte-americano:
A tendência anticiência no anarquismo, que existe mesmo, é completamente contraproducente no que respeita a [tentar resolver a crise ambiental emergente]. Ou seja, vai ser preciso tecnologia sofisticada e descobertas científicas para criar a possibilidade de a sociedade humana sobreviver – quer dizer, a não ser que decidamos que, bom, não tem de sobreviver, que devemos ficar reduzidos a, está a ver, 100 000 caçadores-recolectores ou uma coisa assim. Ok, tirando essa possibilidade, se se tiver uma atitude séria, bem vê, relativamente aos milhares de milhões de pessoa no mundo – e os filhos e os netos dessas pessoas –, vão ser necessário avanços científicos e tecnológicos.
Não sou anarquista (já assim me defini, mas foi há muitos anos…), nem sou fã incondicional de Chomsky (concordo muito com ele às vezes, outras vezes discordo bastante) e não faço de ideia de qual seja a situação do movimento anarquista americano. Se trago aqui a citação de Chomsky é porque acho que se aplica a bem mais do que apenas ao anarquismo americano. Não partilho o pessimismo de Chomsky relativamente à possibilidade de aniquilação do género Homo, mas partilho a sua crença de que precisamos mesmo da ciência. Ora, no meu círculo de amigos e relações (uns mais de esquerda, outros menos, mas que não são nunca conservadores e se assumem, por isso, como pessoas que gostariam de ver o mundo mudado – para melhor, naturalmente), observo às vezes essa mesma atitude anticiência – e pasmo.
É claro que há muitas coisas a rever e a alterar no uso que actualmente se fez de conhecimentos científicos sob a forma de tecnologias. Há sempre. Mas é só mais uma razão para louvar e defender a ciência, porque sempre foi ela e só pode ser ela a fazer esse trabalho – a não ser que se acredite que bastam as intuições de cada um e não é precisa nenhuma evidência sólida que as valide. A crítica séria à ciência vem sempre do próprio meio científico. Uma das vantagens da ciência relativamente a outras formas de tentar conhecer o mundo é essa, a enorme capacidade de autocrítica e de incorporar nova evidência e novas teorias.
Mas não é só relativamente à sobrevivência do mundo como ele agora existe que importa realçar a importância da ciência. É também preciso insistir no papel fundamental que tem tido a ciência para termos hoje as melhores condições de vida de toda a História dos seres humanos. Ou antes: é preciso que entendamos a importância que a ciência teve no nosso progresso para percebermos a importância que não pode deixar de ter no progresso que daqui para a frente possa haver (mesmo que esse progresso não seja crescimento económico, que não deve – nem pode, provavelmente, continuar). E quero agora reconhecer que, se analisarmos a História do bem-estar, chamemos-lhe assim, a História da melhoria das condições de vida dos seres humanos, somos mesmo obrigados a dar alguma razão ao meu companheiro de jantar boliviano que referi no início do texto.
Não toda: O aumento das igualdades, a melhoria dos sistemas de justiça, as melhores condições de trabalho, o decréscimo da violência, o aumento dos direitos de um número cada vez maior de pessoas resultam de mudanças políticas fundamentais para a melhoria da vida das pessoas. É frequentemente subestimada, por exemplo, a influência dos movimentos sindicais na melhoria do bem-estar dos países ricos e estou convencido que uma das causas de atraso no desenvolvimento em países como Moçambique, por exemplo, é a ausência de uma tradição sindical (é só uma ideia vaga, a explorar, até porque nunca li nada sobre o assunto, mas parece-me um bom projecto de reflexão).
Muito bem. Mas outros avanços fundamentais são a descoberta dos microrganismos patogénicos, os antibióticos, as vacinas, a melhoria das técnicas de produção, de construção e de transporte – que resultam do avanço do conhecimento científico! Insisto: é inestimável o trabalho que sindicatos, associações e partidos fizeram para melhorar a vida das pessoas; mas um trabalho provavelmente tão importante como esse fizeram-no os antibióticos, as vacinas, os meios de diagnóstico e o controlo da qualidade e higiene dos produtos alimentares.
Tenho um bom exemplo, que tem sido ultimamente notícia nos jornais – a vacina antipalúdica. No que diz respeito à África subsaariana, toda agente concorda que há muito a melhorar politicamente, tanto ao nível dos seus próprios sistemas políticos como ao nível das políticas internacionais com impacto directo na vida sua gente. Mas uma vacina contra a malária (e campanhas mais eficazes de vacinação em geral) seria, em termos da melhoria da qualidade de vida da esmagadora maioria dos africanos, um progresso tão grande como desenvolvimentos políticos positivos.
Quem quis melhorar o mundo sempre defendeu o realismo baseado em observáveis e a tecnologia assente na ciência. Não há, a meu ver, nenhuma razão, para que deixe agora de o fazer.
À laia de complemento do que acabo de defender, deixo aqui uma palestra TED de Michael Specter: The danger of science denial (“O perigo de recusar a ciência”) – estão disponíveis legendas em português brasileiro, para quem não compreender inglês.
Algumas das posições de Michael Specter são discutíveis (é sempre assim em ciência e ainda bem!), mas a questão colocada pela palestra é precisamente a que coloco acima: qual o papel da ciência no progresso (ou em fazer do mundo um lugar melhor, se não gostarem muito da palavra progresso)? Parece-me que, como Chomsky e muitos outros afirmam, deveria ser óbvio para toda a gente – mas infelizmente não é…. – que a recusa da ciência não leva a lado nenhum. É também chocante que a recusa da ciência, nomeadamente sob a forma da recusa das vacinas (ainda por cima por pessoas que se dizem progressistas...) esteja a matar tanta gente.
Desculpem a insistência, para rematar: para criar um mundo melhor, há, é claro, necessidade de mudança política. Muita e drástica. Todos estamos de acordo sobre isso, mesmo que não concordemos sobre qual a mudança necessária. Mas também precisamos de conhecimento racional, assente em observáveis, em vez de crenças dogmáticas e superstições. Uma banalidade, talvez, mas uma banalidade em que é necessário fazer finca-pé.
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