Nos comentários a um texto meu de há 8 anos, discute-se a pronúncia de geração e mestrado. Em vez de responder a esses comentários com mais um comentário, prefiro fazê-lo aqui num texto novo, porque trato, nesta resposta, questões que talvez interessem a mais pessoas.
O texto que suscitou os comentários de que aqui trato é sobre o sotaque de Lisboa e um comentador que assina Tuggaboy defende que «[e]m Lisboa […] se dizem mal palavras como mestrado (que dizem "mèstrado") [e] geração (que dizem "gèração"»[1]. Outro comentador, Marco Neves, reponde-lhe que «não se pode dizer que sejam formas erradas de falar», já que «[g]eração e mestrado podem ser ditos assim» e acrescenta que «[há] outras palavras com sílabas átonas de vogal aberta, como padeiro, actor, etc.» Tuggaboy, num comentário posterior, aceita o «a aberto» na pronúncia de padeiro, mas, segundo ele, «mais gente diz padaria com o a átono, se bem que o a aberto está a ganhar em número.» Quanto a actor, diz Tuggaboy, «tem o c que abre a vogal, regra básica do português.» E insiste que «mestrado e geração com o e aberto é sotaque de Lisboa, não é a forma correcta.» Diz que falou com professores, investigou e pode afirmá-lo com 100% de certezas. «Geração vem de gerar, não de gèrar», defende. E termina afirmando que «O sotaque padrão de Portugal é o de Coimbra», onde «quem ainda não foi apanhado no sotaque de Lisboa […] não põe acentos inexistentes».
Há muito que comentar e talvez o melhor seja começar pelo princípio, fazendo um pequeno resumo da história da pronúncia das vogais átonas e da história destas duas palavras. Parece-me prático, neste texto, recorrer aos símbolos fonéticos para o «e fechado» (de se) e o «é aberto» (de sé), para os quais usarei respetivamente /ə/ e /ɛ/, mas, para não complicar a vida de quem não está habituado a estes símbolos, escreverei o resto das palavras com grafia normal, não com símbolos fonéticos. O que se segue é, naturalmente, simplificado para dar uma ideia de fenómenos gerais, porque às vezes as coisas são um bocadinho mais complexas.
Ao contrário do que parece depreender-se do que Tuggaboy afirma, as pronúncias com «e aberto», /gɛração/ e /mɛstrado/ são pronúncias conservadoras e não uma inovação introduzida pelos lisboetas nem por ninguém. Inovação são, isso sim, as pronúncias /gəração/ e /məstrado/, mas uma inovação perfeitamente compreensível, porque motivada pela grande tendência para a regularização das regras, que age constantemente em todas as línguas.
Em português antigo, as vogais pronunciavam-se como se pronunciam hoje em espanhol: a, e e o eram /à/, /ê/ e /ô/ quando não estavam na sílaba tónica. Depois, foi-se relaxando a pronúncia destas vogais átonas. Para simplificar, podemos dizer, como muitas vezes se diz, que começaram a «fechar-se». Mas não todas ao mesmo tempo. Este «fechamento» deu-se em dois momentos distintos: num primeiro momento, fecharam-se as vogais átonas que estavam depois da sílaba tónica (postónicas): o /ô/ final passou a /u/, o /à/ final passou a /â/e o /ê/ final passou a /i/. As vogais átonas antes da sílaba tónica (pretónicas) continuaram a pronunciar-se /à/, /ê/ e /ô/[2]. Em seguida, começaram a fechar-se também as vogais átonas pretónicas e os ee átonos que se pronunciavam /i/ foram-se fechando mais até ficarem /ə/ — e chegámos à pronúncia atual.
Agora, há exceções a esta evolução. Marco Neves deu exemplos de duas delas, padaria e ator, mas há dezenas e dezenas, provavelmente centenas. Em princípio, geração e mestrado deviam, precisamente, fazer parte dessas exceções.
As palavras que mantiveram vogais átonas abertas fazem-no principalmente por duas razões: ou porque a vogal está numa sílaba que termina com determinada consoante[3] ou porque ela resulta de uma fusão de duas vogais ao lado uma da outra. Costuma dizer-se, neste último caso, que estavam «em hiato» e chama-se crase a esta fusão. É este caso que nos interessa analisar quando falamos de geração e mestrado.
Uma característica dos falares romances que vieram a dar o português foi deixar de pronunciar muitas consoantes entre vogais. Quando se compara o português com as outras línguas latinas, isto torna-se evidente, mesmo para quem não sabe qual a origem latina das palavras: compare-se, por exemplo, generación, génération e generazione com geração, por exemplo, e panadería com padaria. Ora acontece normalmente que uma vogal aberta que resulta dessa crase «resiste» à regra geral de «fechar» as vogais átonas. É por isso que se diz /esquɛcer/ e não /esquəcer/, /aquɛcer/ e não /aquəcer/, etc., etc., etc. É muito improvável que geração venha de gerar, como Tuggaboy afirma. De facto, os dicionários dizem que, como parece mais plausível, a palavra deriva diretamente da palavra latina generatione(m). Quando caiu o n intervocálico, ficaram durante algum tempo dois ee ao lado um do outro, que acabaram por se fundir, como é normal nestes casos, num /ɛ/, um «e aberto». Quando os ee átonos do português, que eram /ê/, passaram a /i/ e depois a /ə/, este «e aberto»/ɛ/, que era um som diferente, manteve-se nas palavras onde tinha havido crase[4]. Compare-se, por exemplo, /prɛgar/ e /prəgar/, ambos escritos pregar, em que o primeiro vem de praedicāre e passou, portanto, por uma fase preegar e o segundo vem de plicāre e teve a evolução «normal» sem crase. Se tivermos em conta este fenómeno, não só está explicada a pronúncia /gɛração/, como ela até parece mais normal. O anormal é precisamente, que geração tenha começado a pronunciar-se /gəração/ e talvez mais ainda que gerar se tenha começado a pronunciar como atualmente se pronuncia. Quanto a mestrado, a questão é exatamente a mesma: as palavras da família de mestre, como mestria ou amestrar, têm /ɛ/ aberto por causa da crase[5].
Mas então, /gɛração/ e /mɛstrado/ são típicos de Lisboa? Pode ser. Parece-me estranho que só em Lisboa se tenha mantido essa pronúncia tradicionalista, mas é possível. Não tenho maneira nenhuma de o verificar, teria de ir ver como o dizem as pessoas em todo o país, uma coisa um bocado fora do meu alcance. Mas é bastante mais provável que haja oscilação entre as duas pronúncias em várias zonas, embora não negue à partida, que a pronúncia moderna se possa ter espalhado mais rapidamente em certas regiões. Não sei.
E qual é a pronúncia correta? Bom, em vez de correta, gosto mais de falar de padrão ou de norma, para não parecer que as outras maneiras de falar são incorretas, quando são apenas variantes regionais ou sociais[6]. Mas Tuggaboy parece ter razão: é a pronúncia «fechada» que é atualmente considerada a norma. O Dicionário da Porto Editora regista /gəração/ como pronúncia correta de geração. Quanto a mestrado, porém, aceita /məstrado/ e /mɛstrado/, tal como aceita /məstria/ e /mɛstria/ para mestria. O Dicionário da Academia de Ciências, esse, regista apenas /gəração/, /məstrado/ e /məstria/. Não há dúvida de que a pronúncia fechada está a ganhar terreno e que a pronúncia antiga, quer ela persista mais em certas regiões ou não, começa a ser considerada desviante.
Conheço muita gente que se queixa de estarem a fechar-se todas as vogais pretónicas que eram abertas, mas não há razão para se queixar — a língua muda, é tudo. E uma das forças da mudança é a tendência de regularização: a regra de que o fonema /E/, quando é átono, se pronuncia /ə/ vai tendo cada vez menos exceções. Agora, é mais fácil regularizar-se refrães em refrões que irmãos em *irmões, porque irmãos se diz muito, a forma irregular está muito disponível, sempre presente. Acho que há grande consenso sobre isto: quanto menos usada é uma forma, mais depressa se regulariza. Por isso, demorará mais tempo a que esquecer e aquecer passem a ser /əsquəcer/ e /aquəcer/. Pode até ser que certas formas nunca se regularizem, que corar nunca venha a pronunciar-se /curar/, para não se confundir com curar. Enfim, a língua resolverá os problemas que venha a haver… Mas, no geral, não se perde nada com o fechamento das vogais. Ou talvez só num ou noutro caso sem importância nenhuma: eu ainda distingo /fəstinha/, carícia, de /fɛstinha/, pequena festa, mas é natural que a distinção se venha a anular muito em breve, se é que não se anulou já no falar de muitas pessoas.
[Revisto e ligeiramente alterado e 31 de julho de 2023]
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[1] Tuggaboy diz também que «se assiste […] a uma substituição de "tês" (T) por "TSês"», mas não comento isso, porque não consigo perceber a que se refere.
[2] É esta a pronúncia das vogais que existe hoje numa grande parte do português do Brasil, que, neste aspeto, é como o português europeu de há três séculos. Como o francês, o inglês e o castelhano da América, também o português americano tem algumas características conservadoras.
[3] No primeiro caso, temos ainda hoje, por exemplo, as vogais de todas as sílabas terminadas no som /l/ (alcateia, balnear, golfinho ou Melgaço) e algumas terminada noutros sons consonânticos, como tectónico e magnífico, mas há já muita instabilidade neste último caso, observando-se às vezes a coexistência de pronúncias «abertas» e «fechadas» (ouve-se também /mâgnífico/, por exemplo, e /pâctuar/ é bem mais comum, creio eu, que /pàctuar/). É a ação da consoante que explica a «abertura» da vogal em a(c)tor e afins. Como esta vogal era diferente das outras vogais pretónicas, não se fechou como elas, mesmo quando a consoante que tinha causado a «abertura» deixou de se pronunciar. O desenvolvimento foi, portanto, o mesmo que para as mesmas vogais quando resultavam de crase — como se poderia esperar.
Seja como for, independentemente da explicação do fenómeno, não se deve dizer, como diz Tuggaboy, que «actor tem o c que abre a vogal» na pronúncia moderna, porque actor só tinha c na escrita, por convenção, como poderia ter outra marca diacrítica qualquer, por exemplo, um acento grave, ou não ter nenhuma, como acontece na nova ortografia. A palavra era e é uma sequência de quatro sons, /'ator/, independentemente da forma como se transcrevam graficamente. Em actuar e actualidade, havia um c na grafia que não marcava nenhuma abertura…
Há outros casos de vogais pretónicas abertas: o o pronuncia-se aberto quando é uma sílaba sozinho em início de palavra: diz-se /òriente/, /òbrigado/, /òcasião/, etc. E talvez haja outros casos sistematizáveis de que me esteja agora a esquecer.
[4] Ou nas palavras em que ele tinha surgido por causa da consoante final da sílaba, que entretanto deixara de se pronunciar. Note-se que tudo o que digo aqui do «e aberto», /ɛ/, se aplica também ao «o aberto, /ò/. A questão do «à aberto», /à/, é semelhante, mas mais complicada.
[5] O étimo latino de mestre é magister e as formas anteriores à forma moderna das palavras da família tem ae em hiato.
[6] Que o português padrão seja o de Coimbra é afirmação que se ouve com frequência, mas é uma ideia algo estranha. A não ser que alguém o tenha decretado, é anómalo que o padrão seja o sotaque do que é, historicamente, a terceira cidade do país. Pela sua localização central no país? Por ter uma universidade antiga? O que me parece normal, como digo no texto “Português de Lisboa: ao que isto chegou…”, é que o sotaque padrão seja o da classe culta da capital. Mas é discussão lateral ao tema deste texto, que não quero agora desenvolver.
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[1] Tuggaboy diz também que «se assiste […] a uma substituição de "tês" (T) por "TSês"», mas não comento isso, porque não consigo perceber a que se refere.
[2] É esta a pronúncia das vogais que existe hoje numa grande parte do português do Brasil, que, neste aspeto, é como o português europeu de há três séculos. Como o francês, o inglês e o castelhano da América, também o português americano tem algumas características conservadoras.
[3] No primeiro caso, temos ainda hoje, por exemplo, as vogais de todas as sílabas terminadas no som /l/ (alcateia, balnear, golfinho ou Melgaço) e algumas terminada noutros sons consonânticos, como tectónico e magnífico, mas há já muita instabilidade neste último caso, observando-se às vezes a coexistência de pronúncias «abertas» e «fechadas» (ouve-se também /mâgnífico/, por exemplo, e /pâctuar/ é bem mais comum, creio eu, que /pàctuar/). É a ação da consoante que explica a «abertura» da vogal em a(c)tor e afins. Como esta vogal era diferente das outras vogais pretónicas, não se fechou como elas, mesmo quando a consoante que tinha causado a «abertura» deixou de se pronunciar. O desenvolvimento foi, portanto, o mesmo que para as mesmas vogais quando resultavam de crase — como se poderia esperar.
Seja como for, independentemente da explicação do fenómeno, não se deve dizer, como diz Tuggaboy, que «actor tem o c que abre a vogal» na pronúncia moderna, porque actor só tinha c na escrita, por convenção, como poderia ter outra marca diacrítica qualquer, por exemplo, um acento grave, ou não ter nenhuma, como acontece na nova ortografia. A palavra era e é uma sequência de quatro sons, /'ator/, independentemente da forma como se transcrevam graficamente. Em actuar e actualidade, havia um c na grafia que não marcava nenhuma abertura…
Há outros casos de vogais pretónicas abertas: o o pronuncia-se aberto quando é uma sílaba sozinho em início de palavra: diz-se /òriente/, /òbrigado/, /òcasião/, etc. E talvez haja outros casos sistematizáveis de que me esteja agora a esquecer.
[4] Ou nas palavras em que ele tinha surgido por causa da consoante final da sílaba, que entretanto deixara de se pronunciar. Note-se que tudo o que digo aqui do «e aberto», /ɛ/, se aplica também ao «o aberto, /ò/. A questão do «à aberto», /à/, é semelhante, mas mais complicada.
[5] O étimo latino de mestre é magister e as formas anteriores à forma moderna das palavras da família tem ae em hiato.
[6] Que o português padrão seja o de Coimbra é afirmação que se ouve com frequência, mas é uma ideia algo estranha. A não ser que alguém o tenha decretado, é anómalo que o padrão seja o sotaque do que é, historicamente, a terceira cidade do país. Pela sua localização central no país? Por ter uma universidade antiga? O que me parece normal, como digo no texto “Português de Lisboa: ao que isto chegou…”, é que o sotaque padrão seja o da classe culta da capital. Mas é discussão lateral ao tema deste texto, que não quero agora desenvolver.
6 comentários:
Mostrou um bom conhecimento da evolução da língua portuguesa neste artigo. Pareceu-me ter solicitado aos leitores como é a pronúncia destas palavras na sua terra. Estranha-me não encontrar comentários. Terei de contextualizar ter nascido em 1993 e ser de Olhão (Algarve). Cá diz-se gɛração e mɛstrado (gèração e mèstrado) e a forma não acentuada é inaceitável (espantará quem a ouvir).
Comentando a sua publicação:
"[1] Tuggaboy diz também que «se assiste […] a uma substituição de "tês" (T) por "TSês"», mas não comento isso, porque não consigo perceber a que se refere."
O que o Tuggaboy quer dizer é que no final das palavras há muitos apresentadores, locutores e comentadores de TV que insistem em pronunciar o "T" como "Tsê". Exemplo: TV, Tsê-vê. Também se verifica no final das palavras que terminam em "R", a utilização da terminação "Rse". Exemplo: Acabar, "acabarse"
"Em actuar e actualidade, havia um c na grafia que não marcava nenhuma abertura…"
A questão do "c" não marcar nenhuma abertura na vogal não significa que se possa retirar inconsequentemente. A raiz etimológica da palavra está lá. É para isso que serve. É por simplificações como esta que temos hoje um Acordo que permite que se escreva "egito" e "egípcio"...
"Há outros casos de vogais pretónicas abertas: o o pronuncia-se aberto quando é uma sílaba sozinho em início de palavra: diz-se /òriente/, /òbrigado/, /òcasião/, etc. E talvez haja outros casos sistematizáveis de que me esteja agora a esquecer."
Qual é a regra que determina que se pronuncie "òriente", "òbrigado" e "òcasião"? Em Lisboa acredito que se pronuncie assim, mas estará efectivamente correcto?
"[6] Que o português padrão seja o de Coimbra é afirmação que se ouve com frequência, mas é uma ideia algo estranha. A não ser que alguém o tenha decretado, é anómalo que o padrão seja o sotaque do que é, historicamente, a terceira cidade do país. Pela sua localização central no país? Por ter uma universidade antiga? O que me parece normal, como digo no texto “Português de Lisboa: ao que isto chegou…”, é que o sotaque padrão seja o da classe culta da capital. Mas é discussão lateral ao tema deste texto, que não quero agora desenvolver."
Dizer que a pronúncia de Coimbra não tem legitimidade para ser o português padrão porque é só historicamente a 3ª cidade ou deve ser a de Lisboa porque sim, não me parecem argumentos suficientemente fortes para defender a pronúncia de L'sboa...!
Enfim, isto é tudo como as opiniões. E como lá dizia o Herman: "As opiniões são como as vaginas: cada uma tem uma e quem quiser dá-la, dá-la!"
Um abraço.
Caro anónimo ou anónima,
Passo a responder ponto por ponto aos seus comentários:
1. Nunca ouvi nem vi descrito em lado nenhum a pronúncia de tsêvê para têvê.
Também não compreendo ao certo o que quer dizer com «a utilização da terminação "Rse" [em palavras que terminam em “R”.
Se puder enviar-me um link para áudio ou vídeo em que possa observar estes fenómenos, fico-lhe muito grato.
2. Diz que a presença do c em actuar e actualidade serve para dar com da «raiz etimológica da palavra» e que «É por simplificações como esta que temos hoje um Acordo que permite que se escreva "egito" e "egípcio"...
Vamos por partes. Primeiro o c de actuar e actualmente:
A presença na escrita de um c ou outra consoante não pronunciada é amiúde defendida como marca de abertura da vogal por quem prefere a norma de 1911 à norma atualmente em vigor. Também defendem alguns que, mesmo não pronunciadas, algumas consoantes não pronunciadas se devem escrever para criar coerência entre palavras da mesma família. Seria este o caso de actuar, que se justifica por ser parente de acto, em que o c era uma marca diacrítica.
Isto é, de facto, defender exatamente a letra da reforma de 1911. Segundo o ponto IX desta reforma, sobre «conservação de consoantes mudas», lê-se que «são conservadas as consoantes, usualmente mudas, quando facultativamente se profiram, ou quando influam no valor da vogal que as precede; ex.: contracção, reacção, direcção, excepção, adoptar, adopção, espectáculo, carácter, rectidão”, acrescentando-se que «[n]este caso os vocábulos aparentados, em que essas vogais pertençam à sílaba predominante do vocábulo, conservarão, por analogia, a consoante muda; ex.: contracto, directo, excepto, adopto, caracterizar, recto, acto, em razão de activo, acção, etc.»
Mas isto não é defender uma escrita etimológica, que era aquilo que essa reforma (de facto, a primeira normatização da grafia da língua!) pretendia, precisamente, eliminar, optando por uma ortografia de base fonológica. (Não fonética, quer dizer, que desse conta dos sons pronunciados, mas fonológica, dando conta das unidades do sistema). Se se defende a presença de um c pelo seu valor etimológico, há que voltar a aflicto, anedocta, aqueducto, auctor, conductor, dicto, fructo, producto, fructo, isto para dar apenas uma dezena de exemplos com cc etimológicos que não se escreviam antes do Ao90; e há que voltar, pela mesmo lógica, a grafar pp, gg e mm e outras letras não pronunciadas abolidas no ponto VIII da Reforma de 1911, “Supressão de consoantes mudas”:
«São suprimidas as consoantes mudas, quando não influam no valor das vogais que as precedem; ex.: autor, restrito, produto, produção, pronto, presunção, satisfação, praticar, tratar, retratar, sinal, Madalena, aumento, Inácio, Inês, assunto, assinar, sono, dano, condenar, etc.»
Porque se conservou então, depois de 1911, o c de actualmente, actual e actualmente, que não têm parentes em que o c fosse marca diacrítica? Porque não lhe aconteceu o mesmo que aconteceu ao c de tractar ou de practicar?
Das três, uma: ou em 1911, o c destas palavras ainda se pronunciava, sempre ou às vezes; ou a vogal anterior ainda se pronunciava aberta; ou o legislador tinha em mente incluí-la numa família de palavras muito mais ampla do que aquela a que imediatamente pertence. Não sabemos. O que sabemos é, ainda antes da entrada em vigor do AO90, a regra ortográfica anterior já não justificava a grafia com c. Era uma anomalia.
(continua no comentário seguinte)
(Continuação do comentário anterior)
3. A regra «que determina que se pronuncie "òriente", "òbrigado" e "òcasião"» é essa que eu enuncio, precisamente:
O fonema /o/ pronuncia-se [ó] aberto em início de palavra quando é silábico ou (acrescento agora) quando está numa sílaba VC em que é núcleo de sílaba: organizar, obtuso, ostentar.
Admito que possa pronunciar-se [ô] em certas pronúncias, não sei; não conheço todas as variações dialetais. Mas não se pronuncia [u], como se poderia esperar pela sua posição átona. E é aqui que eu queria chegar com o meu comentário, como creio que é evidente no contexto.
Note que conheço exceções por hipercorreção: há quem ache fino dizer ubrigado, mas creio que isto é sempre do domínio da variação individual (idioleto) e não da variação regional (dialeto) ou social (socioleto).
E note, já agora, que a pronúncia «anómala» de vogais em início absoluto de palavra (relativamente à regra de recuo e elevação da pronúncia das vogais átonas, muitas vezes referida como «fechamento») não é exclusiva do /o/ — o /e/ também se pronúncia sempre [i] quando é silábico em início de sílaba: como eu costumo dizer aos meu alunos, o [i]lefante é um animal [i]norme, mas muito [i]legante.
Se pronunciar de uma ou de outra forma está efetivamente correto, não é coisa que eu queira decidir. O que compete a quem, como eu, quer descrever a língua objetivamente e compreender os seus mecanismos, não é decidir o que se pode ou não dizer. Não se espera do botanista que determine qual é a cor correta das batatas ou se as figueiras devem ou não dar figos duas vezes por ano. Quando falo de regra, falo da regra interiorizada pelos falantes nativos da língua, que se deduz observando e analisando a sua produção linguística.
(continua no comentário seguinte)
(continuação do comentário anterior)
4. Finalmente, creio que me entendeu mal, quando diz que eu digo que a pronúncia de Coimbra não tem legitimidade para ser o português padrão, porque é só historicamente a 3ª cidade, ou deve ser a de Lisboa porque sim».
Como referia atrás, não me importa o que «deve» ser. Não acho nenhuma pronúncia superior a outra, nem acho que haja alguma delas que «deva» ser instituída como padrão. Eu falo do que é, não que deve ser. Não faço juízos de valor, falo só de normalidade e anomalia. Há cerca de 7000 línguas no mundo e nem 200 estados-nações chega a haver, de maneira que talvez seja abusivo falar de «normalidade». Mas onde eu quero chegar é que costuma ser a variante culta da cidade mais importante, o mais das vezes a capital, que serve de padrão às línguas nacionais. Para dar dois exemplos simples, o padrão do castelhano em Espanha assenta no espanhol da classes culta de Madrid e o padrão do francês de França assenta no falar culto da região parisiense. Note que eu digo a norma culta. Digo num outro texto, meio a brincar, meio a sério, que fico triste quando vou a Lisboa, porque já ninguém fala o lisboeta que eu conheci. Que, por tal sinal, se afastava muito do padrão. O padrão, que eu continuo a acreditar que (de facto, não porque eu ache que deva) se baseia na norma culta da região de Lisboa, vai absorvendo muitas variações dialetais, entre as quais o falar popular de Lisboa. Evidentemente, tudo isto pode verificar-se e confirmar-se ou infirmar-se, não é apenas uma questão de opiniões. Por exemplo:
Um caso em que há (ou pelo menos, já houve) marcada variação dialetal: a oposição entre os ditongos nasais que se escrevem -em e ãe. Hem muitas zonas do país, tanto no Norte como no Sul, esta distinção era clara, mas em Lisboa a distinção anulou-se (talvez também noutros sítios, não sei, e não conheço o sotaque de Coimbra). E o que se vê nos dicionários hoje (que transcrevem segundo o que definem como padrão)? Bom, infelizmente, não posso aqui apresentar conclusões sobre isto, porque não tenho acesso a muito dicionários que incluam a pronúncia (a versão online do Dicionário da Academia de Ciência já não a tem), mas o Porto Editora faz rimar «também» com «mãe», ambos com a terminação [-ɐ̃j̃] ([ãi], se não conhecer o alfabético fonético). O Portal da Língua Portuguesa do Instituto de Linguística Teórica e computacional apresenta também o mesmo [-ɐ̃j], como único padrão do português europeu, designando-o como «Lisboa (padrão)». Não se registam as pronúncias nem do Norte nem do Sul. Vejamos outro caso em que há (ou houve…) grande variação dialetal no português europeu: o ditongo que se escreve -ei. O Porto Editora dá-o como [-ɐj] (âi); o Portal da Língua Portuguesa também. Não se registam as outras variações, com a vogal do ditongo mais próxima de [ê] ou [é], a norte, ou as monotongações a sul. Vejamos um terceiro caso, o do e de conselho: aí, o Porto Editora admite três pronúncias-padrão: [kõˈsɐʎu], [kõˈseʎu] e [kõˈsɐjʎu], que é como quem diz, sem símbolos fonéticos, [consâlho], [consêlho] e [consâilho]. O Portal da Língua Portuguesa só apresenta a forma [kõ.sˈɐ.ʎu] ([consâlho]) do tal «Lisboa (padrão)».
E pronto, agora haveria que continuar, ver os casos das várias diferenças dialetais relevantes, ver o que apresentam como norma outros dicionários do português europeu, juntar-lhe os dados observados na rádio e na televisão, e concluir-se por fim qual é, neste momento, o português padrão e ver se se baseia ou não, como eu creio, na norma culta da zona de Lisboa.
Retribuo o abraço, mesmo sem saber a quem o dou.
Mais uma resposta ao comentário anónimo, sobre a questão de Egito e egípcio. Como sou um grande preguiçoso, recupero, alterando-o muito ligeiramente, uma resposta a um comentário sobre o mesmo assunto, noutro texto:
A questão de Egito/egípcio é efetivamente linguística e não ortográfica. Independentemente de como se escreva, o nome do país é [iˈʒitu] e o gentílico ou adjetivo que corresponde a esse nome é [iˈʒipsiu]. Acontece muitas vezes que duas formas com origem num mesmo radical chegam à fase atual da língua com diferenças nesse radical: uma forma mantém-se próxima do radical etimológico e outra evolui. Veja «peito» e «expectoração», por exemplo. Mas não se costuma propor nenhuma «unificação» gráfica das formas («peito» escrito como «pecto», só para corresponder a «expectoração»?) Isto é muito comum nos topónimos e gentílicos, em que o gentílico é muitas vezes conservador: Braga, mas bracarense, Évora, mas eborense, etc., etc. O caso de Egito e egípcio é igual: o /p/ manteve-se no gentílico, mas desapareceu no topónimo. Mais uma vez, nunca ouvi ninguém propor que se escreva Brácara ou Ébora, para não haver discrepância entre os radicais de topónimo e gentílico, mas muita gente parece preocupada com a mesma discrepância em Egito e egípcio.
Dito doutra maneira: à língua o que é da língua; à ortografia o que é da ortografia.
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