19/01/21

A beleza e a verdade


Na sua página do Facebook, lembrava Frederico Lourenço em vésperas de Natal uma conversa entre Charles Ryder e Sebastian Flyte, duas personagens do romance Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh (traduzo eu[1]):
[Charles:] “Mas, meu caro, Sebastian, não podes mesmo acreditar nisso tudo... O Natal, quero eu dizer, e a estrela e os três e o boi e o burro.
[Sebastian:] “Acredito nisso tudo, sim. É uma ideia adorável.”
[Charles:] “Mas não se pode acreditar em coisas só porque são uma ideia adorável.”
[Sebastian:] “Mas eu acredito. É assim que eu acredito.”
No texto de Waugh, a palavra é lovely. Eu traduzi lovely por adorável. É uma tradução aceitável, mas não é sem problemas. Lovely é uma palavra mais corrente que adorável é tem um sentido mais vasto — pode dizer-se, por exemplo, de comida e de outras coisas para as quais nunca se usa a palavra adorável em português. E depois, em inglês, lovely distingue-se de adorable, que, em muitos casos, parece também traduzir-se por adorável. Em última análise, porëm, todas estas palavras têm um sentido semelhante: dizem-se de uma coisa de que se gosta. Embora com matizes de sentido que, a um certo nível de análise, não são despiciendas, palavras como adorável, maravilhoso, encantador, etc., são termos de aprovação — como bom. No seu texto, Frederico Lourenço refere a loveliness de Sebastian como beleza e, de facto, acho que bela ou bonita funciona tão bem como adorável para traduzir lovely. Lovely usa-se também para apreciações puramente —ou sobretudo — estéticas. E belo é também um termo de aprovação, como bom, mas cobrem os dois termos áreas às vezes diferentes: com bom aprova-se a funcionalidade, a moral, o gosto ou o cheiro, entre muitas coisas, ao passo que belo é o que se vê ou ouve; mas um texto, um período de tempo ou um tecido — e milhentas outras coisas — tanto podem ser belos como bons, às vezes sem grande diferença de significado entre as duas adjetivações, outras vezes com diferenças claras.

As palavras são como as cerejas, sobretudo neste blogue, e escorrem conversas de outras conversas. Mas deixemos agora esta faz-de-conta-que semântica, não é esse o propósito do texto. Como também não é de modo algum intenção minha, note-se, criticar quem acredite no Natal (independentemente do que acreditar no Natal queira dizer para essa pessoa) por achar que o Natal é uma ideia adorável. E muito menos criticar a mensagem de Natal de Frederico Lourenço, que acho bonita e cuja leitura aconselho (se n'ao o fizeram ainda, sigam o link no inïcio deste texto, o post é público). Antes quero, a propósito desta passagem da novela de Evelyn Waugh, alinhar algumas breves considerações sobre a relação da verdade com categorias como beleza, harmonia e simplicidade.

Lembro-me de ler, quando era rapaz novo, o livro Descobertas na Terras dos Maias (aliás, já aqui referido na Travessa), em que Pierre Ivanoff apresenta uma hipótese surpreendente para explicar o colapso do período clássico maia: e se, baseando-se na estrutura cíclica do seu calendário, os sacerdotes maias tivessem anunciado o fim próximo da sua civilização e, por acreditarem nas suas predições e abandonarem as cidades, as populações tivessem confirmado a veracidade das profecias tornando-as realidade? É uma grande ideia, sem dúvida — se o Sebastian Flyte de Brideshead a achasse adorável ao ponto de acreditar nela, quem lhe poderia levar isso a mal? Para mentes mais escrutinadoras, porém, que possibilidades tem esta ideia de descrever o que realmente se passou (mesmo que a também apaixonante ideia de colapso repentino da civilização não fosse, como é, muitas vezes posta em causa)?

A beleza seduz, evidentemente[2]. Há muitas histórias de ideias assim, «bem achadas» mas sem grande — ou nenhuma — possibilidade de serem verdadeiras[3]. Se escolhi esta é porque é também uma história sobre wishful thinking na sua versão mais forte: desejar tanto uma coisa que se faz com que essa coisa aconteça — algo que é muito raro na vida… Mas acreditar numa asserção porque a achamos bonita pode considerar-se, afinal, uma forma de wishful thinking, acreditar na realidade de uma coisa porque a desejamos. É certo que desejar e achar bonito não são exatamente a mesma coisa, mas normalmente deseja-se o que se valoriza…

Enfim, eis que as palavras saem mais uma vez umas pegadas às outras, como as cerejas. Voltemos ao cerne da questão: que implicações pode ter a sedução da beleza de uma ideia nas asserções sobre a sua veracidade? Ou então, mudando ligeiramente de perspetiva, onde nos pode levar o fascínio da beleza quando é a verdade que queremos saber? Talvez dependa das áreas de pesquisa. Como realista que sou, costumo afirmar que não há nada de fundamentalmente diferente numa investigação judicial ou numa investigação científica: em ambos casos se procura demonstrar o que se acredita ser a verdade com recurso a observáveis, ou seja, coisas que todos podem ver, quando elas lhes são apresentadas. Muito provavelmente, porém, poucos defenderão a importância da beleza na investigação judiciária, ao passo que há muito quem defenda uma íntima correlação entre beleza e verdade no domínio científico[4].

Sabine Hossenfelder é uma física teórica alemã e divulgadora científica. Tem um blogue e um canal de vídeo que acompanho e publicou em junho de 2018 um livro chamado Lost in Math: How Beauty Leads Physics Astray, em que defende que a sedução de beleza das grandes teoria está a travar o progresso da física teórica. Não li o livro, mas vi na Internet algumas palestras em que Hossenfelder resume as ideias que aí defende. Segundo ela, há no trabalho científico, e nomeadamente em Física teórica, uma tradição de valorizar a beleza, entendida como «simplicidade», «naturalidade» e «elegância»[5].

O matemático e físico Hermann Weyl afirmava ter sempre tentado juntar a verdade com a beleza, mas que, a ter de escolher só uma delas, escolheria a beleza[6]. O físico Paul Dirac postulava que, com a teoria da relatividade, o princípio da necessária simplicidade de todas as equações descrevendo a realidade fora substituída por outro princípio mais fundamental: a da sua necessária beleza matemática; e que, a escolher entre simplicidade e beleza, havia, pois, que escolher a última, como Einstein fizera[7]. O físico Anthony Zee, referindo também Eistein, torna explícita, de forma radical, a procura da beleza como programa científico, indo ao ponto de postular que a beleza é mais importante que a verdade[8]. Steven Weinberg, que ganhou um prémio Nobel da Física, defende também que a beleza serve como guia em ciência e justifica a afirmação dizendo que a história deu aos cientistas o sentido «estético» que lhes permite reconhecer, pela sua beleza, as boas teorias, como um criador de cavalos reconhece, pela beleza, a qualidade de um animal[9]. Murray Gell-Mann também pensa — com base na sua própria experiência, diz ele — que, perante uma teoria de uma grande beleza, um cientista pode até duvidar de experiências que a infirmem. E explica até de forma mais organizada como funciona esse sentido estético que permite reconhecer, pela sua beleza, uma teoria cientifica: a matemática usada em novas teorias é simples e bela, porque é muito semelhante à usadas nas descobertas que a precederam e motivaram, «porque já a sabemos escrever de modo conciso e sedutor»[10].

Diz Frederico Lourenço na referida mensagem de Natal que «A capacidade humana para ver e criar beleza é a grande redenção.» É sem dúvida uma capacidade humana fundamental e tempos de crise como a atual pandemia vêm com certeza recordar a importância dessa nossa capacidade a quem acaso a tivesse esquecido. Mas vêm também recordar-nos outra verdade fundamental a que muitos, infelizmente, continuam a não dar o devido valor: é que pelo menos tão importante como a capacidade humana de ver e criar beleza é a capacidade humana de ir além dos limites «naturais» dos seus sentidos e intuições e criar descrições adequadas («verdadeiras!») não só do nosso mundo como de todos os mundos. A ciência resulta dessa capacidade.

A objeção que nos surge imediatamente a esta ideia de Weinberg e Gell-Mann — uma objeção de que Hossenfelder também dá conta, aliás — é que fiar-se assim num sentido de beleza assente no reconhecimento das qualidades que funcionaram antes implica que as novas boas teorias não tenham de cortar com as anteriores. Não sei nada de Física e não posso avaliar se, como Hossenfelder defende, há de facto um desperdício de recursos em Física teórica porque se valoriza sedutoras teorias gerais, que não se têm conseguido demonstrar ou que são por natureza intestáveis (ela dá como exemplos a teoria das cordas e hipótese dos multiversos, respetivamente), em vez de se seguir a via mais prática de tentar resolver os problemas imediatos, as contradições dos modelos existentes, com hipóteses que, no presente, possamos testar. Mas a questão da beleza das teorias não se coloca exclusivamente na Física e não me parece que seja avisado, em nenhum empreendimento intelectual, partir do princípio de que o queremos descobrir se parece com o que já sabemos; nem vejo que boa razão pode haver, a não ser uma não assumida religiosidade, para pressupor que as leis da Natureza terão de ser atraentes, harmoniosas, simétricas, simples… — ou seja, à medida de conceitos de beleza que seguramente não se desenvolveram em nós para nos motivar na procura dessas leis e muito menos para as avaliar.

Como dizia Richard Feynman, a única coisa — a única! — que faz com uma teoria seja boa é estar de acordo com o observado. «Se a hipótese é muita bonita ou não, se se é muito esperto ou não, quem criou a hipótese e o nome que tem», nada disso conta[11].

Jimmy Harris: Locomotiva a vapor abandonada no cemitério de comboios de Uyuni, Bolívia (pormenor), 2009. Creative Commons, daqui


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Notas

[1] O original:
“But my dear Sebastian, you can’t seriously believe it all... I mean about Christmas and the star and the three kings and the ox and the ass.”
“Oh yes, I believe that. It’s a lovely idea.”
“But you can’t believe things because they’re a lovely idea.”
“But I do. That’s how I believe.”
É de notar que não é como «ideia adorável» que a maioria das pessoas religiosas acredita nos dogmas, nas personagens ou nas narrativas oficiais da sua religião, mas sim como factos verídicos, embora não observáveis por todos — só quem tem fé lhes reconhece a realidade.

[2] E não é só a beleza das ideias que nos leva a acreditar nelas: a psicologia experimental revela que «uma melhor aparência física contribui para que se acredite que uma pessoa é melhor, mais inteligente, mais bem-sucedida, mais importante e mais valiosa» — e que, convenhamos, é moralmente assustador. Esta definição é retirada da secção «Fenómeno do privilégio da beleza» do artigo da Wikipédia sobre o «Estereótipo da beleza física». Na secção referida, listam-se alguns dos vieses cognitivos causados pela beleza física, com links para muitos estudos e artigos sobre a questão.

[3] Brinco aqui com a célebre frase de Giordano Bruno em De gl’eroici furori: «Se não é verdade, é muito bem achado» («se non è vero, è molto ben trovato»).

[4] Saindo da questão da relação entre beleza e verdade, é interessante constatar que, no que diz respeito à pura aferição da veracidade uma asserção, as mesmas pessoas que aceitam a fé como única premissa necessária para justificar uma crença exigem, e ainda bem, que haja provas factuais (observáveis) para as decisões de um tribunal de lei. (Também as mesmas pessoas que duvidam da «objetividade» do mundo real têm o mesmo comportamento a atravessar a rua que qualquer realista que acredite que o mundo é mais que construção mental ou social… Mas isso é outra conversa. Ou talvez não…)

[5] Hossenfelder sobre esta sua definição de beleza (traduzo eu, daqui):
Com simplicidade (…) refiro-me à simplicidade absoluta: uma teoria deve ser simples, ponto final. Quando as teorias não são suficientemente simples para os gostos dos meus colegas, elaes tentam torná-las mais simples – unificando várias forças ou postulando novas simetrias que combinam partículas em conjuntos ordenados.
O segundo critério é a naturalidade. A naturalidade é uma tentativa de descartar o elemento humano, exigindo que uma teoria não utilize pressupostos que pareçam escolhidos a dedo. Este critério aplica-se o mais das vezes aos valores de constantes sem unidades, como sejam os rácios das massas de partículas elementares. A naturalidade exige que esses números sejam próximos da unidade ou, se assim não for, a teoria explica porque não.
Depois há a elegância, o terceiro e mais esquivo aspeto da beleza. É muitas vezes descrita como uma combinação de simplicidade e surpresa que, em conjunto, apontam para novas associações. Encontramos a elegância no «efeito ah ah», o momento de descoberta em que as coisas encaixam umas nas outras.
A lista de autores e respetivas ideias que apresento no parágrafo seguinte é tirada de uma palestra de Sabine Hossenfelder no Centre de Cultura Contemporània de Barcelona, em 2019, How Beauty Leads Physics Astray Quantum, disponível aqui.

Para ter ideia das críticas de Hossenfelder ao que ela considera a estagnação da Física teórica, ver, por exemplo, este texto do seu blogue: “The Present Phase of Stagnation in the Foundations of Physics Is Not Normal” ou o texto em The Week já referido no início desta nota.

[6]My work always tried to unite the truth with the beautiful, but when I had to choose one or the other, I usually chose the beautiful.” Citado por Freeman J. Dyson na revista Nature, de 10 de março de 1956.

[7] Paul Adrien Maurice Dirac, “The Relation between Mathematics and Physics, lecture delivered on presentation of the James Scott prize", 6 de fevereiro de 1939, in Proceedings of the Royal Society (Edinburgh) Vol. 59, 1938-39, Part II pp. 122-129 (disponível aqui):
The dominating idea in this application of mathematics to physics is that the equations representing the laws of motion should be of a simple form[, but t]he discovery of the theory of relativity made it necessary to modify the principle of simplicity. (…) What makes the theory of relativity so acceptable to physicists in spite of its going against the principle of simplicity is its great mathematical beauty. This is a quality which cannot be defined, any more than beauty in art can be defined, but which people who study mathematics usually have no difficulty in appreciating.
The research worker, in his efforts to express the fundamental laws of Nature in mathematical form, should strive mainly for mathematical beauty. He should still take simplicity into consideration in a subordinate way to beauty. (…) It often happens that the requirements of simplicity and of beauty are the same, but where they clash the latter must take precedence.
[8] Fearful Symmetry: The Search for Beauty in Modern PhysicsPrinceton University Press (1986), Cap. I, secção “Beauty before truth” (disponível aqui):
My colleagues and I in fundamental physics are the intellectual descendants of Albert Einstein; we like to think that we too search for beauty. Some physics equations are so ugly that we cannot bear to look at them, let alone write them down. Certainly, the Ultimate Designer would use only beautiful equations in designing the universe! we proclaim. When presented with two alternative equations purporting to describe Nature, we always choose the one that appeals to our aesthetic sense. "Let us worry about beauty first, and truth will take care of itself!" Such is the rallying cry of fundamental physicists.
[9] Entrevista à série televisiva de divulgação científica NOVA (data?; acessível aqui):
NOVA: What is beauty to a theoretical physicist?
Weinberg: It may seem wacky that a physicist looking at a theory says, "That's a beautiful theory," and therefore takes it seriously as a possible theory of nature. What does beauty have to do with it? I like to make an analogy with a horse breeder who looks at a horse and says, "That's a beautiful horse." While he or she may be expressing a purely aesthetic emotion, I think there's more to it than that. The horse breeder has seen lots of horses and from experience with horses knows that that's the kind of horse that wins races.
So it's an aesthetic sense that's been beaten into us by centuries of interaction with nature. We've learned that certain kinds of theories—the kind that win races—actually succeed in accounting for natural phenomena. The kind of beauty we look for is a kind of rigidity, a sense that the theory is the way it is because if you change anything in it, it would make no sense.
[10] Ver, por exemplo, este TED Talk (excerto da tradução portuguesa da palestra, disponível na mesma página):
O fundamental desta palestra é o seguinte: Temos uma experiência notável neste campo da física fundamental, ou seja, a beleza é um critério bem-sucedido para escolher a teoria certa. Porque é que será?
Vou dar-vos um exemplo da minha experiência. É realmente surpreendente que isto tenha acontecido. Em 1957, três ou quatro de nós, formulámos uma teoria parcial de uma destas forças, a força fraca. Estava em desacordo com sete — sete, contem-nas — sete experiências. As experiências estavam todas erradas.
Nós publicámos a teoria antes de o saber, porque achámos que era tão bela que tinha que estar correta! As experiências tinham que estar erradas, e estavam mesmo. (…) Porque é que este tipo de teorias funciona? A questão é esta. O que é queremos dizer quando falamos em beleza? Vou tentar esclarecer este ponto — esclarecê-lo em parte. Porque é que funciona? (…)
Diz-se, com frequência, que estamos cada vez mais perto das leis fundamentais ao examinarmos fenómenos a baixas energias e, de seguida, a energias mais altas, e ainda mais altas, ou distâncias mais curtas e, a seguir, ainda mais curtas e de novo distâncias ainda mais curtas, etc., É como descascar as camadas de uma cebola. (...)
Sucede que, (...) consoante vamos descascando as camadas da cebola e nos aproximamos cada vez mais da lei de base, verificamos que cada camada tem algo em comum com a anterior, e com a seguinte. Podemos escrevê-lo matematicamente, e verificamos que a matemática é muito semelhante. As diferentes camadas requerem uma matemática semelhante. (…)
O que sucede é que os novos fenómenos, as novas camadas, as camadas interiores das camadas ligeiramente menores da cebola que atingimos, parecem-se com as ligeiramente maiores. O tipo de matemática de que necessitámos para a camada anterior é quase o mesmo de que necessitamos para a camada seguinte. É por isso que as equações parecem tão simples. Porque usam a matemática que já temos. (…) Cada camada da cebola mostra uma semelhança com as camadas adjacentes. A matemática para as camadas adjacentes é muito semelhante à que necessitamos para a nova camada. Por isso é muito bela. Porque já a sabemos escrever de modo conciso e sedutor.
[11] Eis a transcrição de um excerto de uma conhecida aula de Feynman, que se pode ver, por exemplo, aqui (traduzi e sublinhei eu a parte em itálico):
Now I’m going to discuss how we would look for a new law. In general, we look for a new law by the following process. First, we guess it (audience laughter), no, don’t laugh, that’s the truth. Then we compute the consequences of the guess, to see what, if this is right, if this law we guess is right, to see what it would imply and then we compare the computation results to nature or we say compare to experiment or experience, compare it directly with observations to see if it works.
If it disagrees with experiment, it’s wrong. In that simple statement is the key to science. It doesn’t make any difference how beautiful your guess is, it doesn’t matter how smart you are who made the guess, or what his name is … If it disagrees with experiment, it’s wrong. That’s all there is to it.








16/01/21

Sprint

Veio-me há bocado à ideia, já não sei a que propósito, a seguinte interrogação: será que a velocidade da metade final dos 200 m em atletismo não é mais rápida que a dos 100 m? «Não será que o balanço ganho contrabalança a dificuldade do arranque?», pensei eu, que destas coisas não percebo nada.

Fui ver. Quer dizer, não fiz um estudo exaustivo, comparei apenas os tempos de alguns dos campeões de sprint que correm as duas distâncias. E cheguei logo à conclusão que as coisas não são nada lineares: para alguns, o tempo dos 200 m é mais que o dobro do tempo dos 100 m — por exemplo, para o recordista mundial de ambas as distâncias, Usain Bolt; mas há outros que correm alguma parte dos 200 m (não forçosamente a metade final, pensei eu depois) mais depressa que os 100 m, porque o seu tempo nos 200 m é menos que o dobro do seu tempo nos 100 m (ver as casas com fundo cor-de-rosa na tabela).

 
200 m
200 m / 2
100 m
Usain Bolt
19,19
9,595
9,58
Yohan Blake
19,26
9,63
9,69
Noah Lyles
19,50
9,75
9,86
Walter Dix
19,53
9,765
9,88
Tyson Gay
19,58
9,79
9,69
Asafa Powell
19,90
9,95
9,72

Agora, não se pode saber quem correu os 100 metros mais rápidos de sempre numa competição oficial (não a prova, mas a distância). Talvez haja 100 metros de uma prova de 200 m de Usain Bolt que ele tenha corrido mais depressa do que quando bateu o record do mundo dos 100 m em Berlim, em 2009. Até pode ser que alguns 100 metros da corrida de Yohan Blake em Bruxelas em 2011, quando alcançou a segunda melhor marca de sempre nos 200 m, tenham sido mais rápidos que os 100 m de Bolt em Berlim, quem sabe?

Adenda a 17.1.21:
J. J. Amarante teve a gentileza de me enviar um  detalhadíssimo relatório biomecânico da final de 200 m do Campeonato Mundial de Atletismo de 2017, em Londres, elaborado por uma equipa de cientistas da Carnegie School of Sport para a Associação Internacional de Federações de Atletismo (que se pode descarregar aqui). Na página 9 deste relatório, comparam-se os tempos dos primeiros 100 metros com os tempos dos últimos 100 m e sete dos oito finalistas correm mais depressa a segunda metade da prova que a primeira. A minha hipótese de leigo não era, ao que parece, disparatada de todo.