[Tentei evitar, neste texto, o uso do alfabeto fonético internacional, que muita gente não conhece, mas nem sempre foi possível. Assim, transcrevo a maior parte das vezes para a pronúncia mais aproximada do português europeu, entre parêntesis retos [ ] em itálico, e, quando tenho mesmo de usar um símbolo fonético uso barras (/ /) e o símbolo sem itálico, acrescentando ainda uma nota que explica de que som se trata. Para referir letras, uso sempre maiúsculas em negrito: C.]
Em abril e maio fiz, com a minha mulher e um casal amigo, uma viagem de carro da Dinamarca à Geórgia (Geórgia) e volta. Fizemos 12.300 km por 14 países[1]: à ida, passámos pela Alemanha, Chéquia[2], Eslováquia, Hungria e Turquia; à volta, atravessámos de novo a Turquia e depois a Grécia, Albânia, Montenegro, Croácia, Eslovénia, Áustria e, claro, de novo a Alemanha. Foi uma viagem fascinante por várias gentes, paisagens, arquiteturas, histórias, culturas, gastronomias e línguas. Mas foi também uma viagem por vários alfabetos e várias variações de cada um deles. Talvez aqui venha a falar da viagem propriamente dita, ou de partes dela, pelo menos — dos lugares e situações por aonde passámos. Mas agora é mais de escrita que vos quero falar. Foi uma parte curiosa da minha experiência em viagem — reaprender a ler. Quando ao fim de duas semanas na Geórgia, comecei a juntar letras antes desconhecidas, timidamente, devagarinho, quase revivi a aprendizagem da leitura. Quase, digo bem, porque aprender um alfabeto novo não é exatamente a mesma coisa que aprender a descodificar a escrita pela primeira vez…
Antes de mais, uma panorâmica dos sistemas de escrita por onde passei. Não conto a Dinamarca, país de partida e de chegada, e país onde moro. Dos outros países por onde passámos, em onze deles usam-se versões locais do alfabeto latino (Alemanha, Chéquia, Eslováquia, Hungria, Turquia, Albânia, Montenegro, Croácia, Sérvia, Eslovénia e Áustria); em três deles, versões locais do alfabeto cirílico (Montenegro, Sérvia e Bulgária); na Geórgia, o alfabeto georgiano; e, na Grécia, o alfabeto grego. Agora, onze mais três mais um e mais um dá dezasseis e não catorze. É que a Sérvia e Montenegro têm dois alfabetos oficiais, o cirílico e o latino[3].
Nos países onde não se usa o alfabeto latino (Bulgária, Geórgia e Grécia), os nomes das localidades aparecem quase sempre na escrita local e numa forma latinizada: normalmente, adota-se uma transcrição/transliteração «internacional», que eu creio que, de facto, se baseia na tradição inglesa (CH para [tch], SH para [ch], KH para /x[4]/, etc.). Foi em grande parte a partir destas placas toponímicas em dois alfabetos que fui deduzindo os sons correspondentes às letras dos alfabetos novos, consultando depois Google em caso de dúvida, quando chegava a um sítio com ligação à internet.
Isto de se apresentarem os nomes das localidades também num alfabeto estrangeiro, não deixa de ser curioso, já que, nos países em que se escreve com alfabeto latino, não passa pela cabeça de ninguém transcrever em cirílico, em grego ou em georgiano os nomes das terras. E é pena, porque Braga havia de ficar bem como Брага, e ficam muito bonitos Córdoba como Κόρδοβα e Liverpool como ლივერპული, por exemplo. Também as matrículas dos automóveis, os códigos de identificação internacional de automóveis e os códigos ISO dos países são, em todo o lado, em alfabeto latino. E isto diz alguma coisa sobre como o alfabeto latino é de alguma forma considerado mais «neutro» ou «universal» — sobre como ele é, de facto, mais poderoso, por ser usado pela maior parte das nações mais poderosas nos últimos séculos, que colonizaram uma grande parte do mundo, o que faz com que seja atualmente usado por 70% da população mundial…). Por isto mesmo, num país que use um alfabeto não latino, ninguém espera — e acertadamente — que um estrangeiro saiba ler o alfabeto local. Lembro-me que, num hotel em Plovdiv, para me treinar na leitura do cirílico, li em voz alta закуска numa nota na parede ([zakusska], «pequeno-almoço») e que o rececionista se surpreendeu («Ah, sabe ler búlgaro?») e me informou — em inglês, note-se — que era das 7:00 às 10:00.
Já agora, de passagem, a questão das transcrições de um para outro alfabeto é interessante. Note-se, antes de mais, que não há uma forma única de transcrever de um sistema para outro, mas a transcrição depende antes da língua de chegada, porque normalmente se transcreve som e não se transliteram caracteres um a um. Assim, a transcrição de Чайкóвский para o alfabeto latino é normalmente Tchaikovsky em inglês (o T inicial é, em última análise, desnecessário…), Chaikovski em castelhano, Tchaïkovski em francês, e Ciaikovski em italiano, por exemplo, para a leitura, nessas línguas, se aproximar o mais possível do som russo original. E são questões de transcrição que justificam, às vezes, certas «anomalias» como a grafia turca de otomobile, otogar ou otel. A explicação é, quase de certeza, que as palavras automobile, autogare e hotel, importadas do francês, foram primeiro transcritas — foneticamente, sublinho — para a variante otomana do alfabeto árabe. Depois, quando a escrita do turco passou, em 1928, a fazer-se com o alfabeto latino, não se retomou a grafia original do francês, que seria confusa para um falante do turco que não estava habituado a ela, mas as palavras foram antes retranscritas, mais uma vez foneticamente, e é por isso que têm atualmente a forma que têm. Vi também, no programa em inglês de um balé que fomos ver em Tbilisi, na Geórgia, o nome próprio de Ravel escrito Moris. Mais uma vez, uma questão de retranscrição: o nome Maurice é, naturalmente, transcrito em georgiano como se pronuncia, მორის [moriss]. Ao retranscrever, a pessoa que escreveu o texto em inglês, transformou apenas as letras e sons georgiano nos correspondentes «normais» em inglês.[5] Vi também fakhitas num menu georgiano em inglês. Mais uma vez, o resultado de uma retranscrição: o som /x/ do jota castelhano em fajitas é transcrito em georgiano pela letra que o representa nesta língua: ხ; e foi depois retranscrito por KH, que é, na Geórgia, a sua mais habitual transcrição para o alfabeto latino.
Agora, um exemplo concreto de viagem alfabética: uma letra que é igual em todos os alfabetos e suas variantes por que passámos na nossa viagem, menos no georgiano, é a letra C. Notem que o C do alfabeto latino, derivado do gama grego, não tem a mesma origem que os CC dos alfabetos cirílico e grego, derivados ambos do chamado sigma crescente, uma variante cursiva do sigma grego. Mas têm hoje exatamente a mesma forma, de maneira que muita gente os verá como a mesma letra, apenas representando valores diferentes. Nos alfabetos cirílico e grego (atualmente, é muito pouco usado em grego), o C representa sempre o som /s[6]/: Sófia é Со́фия e Subotica é Суботица, e pronto. Não é muito fácil, para quem está habituado a outros valores de uma letra visualmente igual, habituar-se a isto: Сара lê-se [sara] e não [capa] e салат lê-se [salat]. Mas, com o tempo…
No alfabeto latino, o C representava originalmente o som /k[7]/; mas, nas diversas variações modernas desse mesmo alfabeto, o C pode representar vários sons. Pode ser, por exemplo, como em português, francês, castelhano americano[8] e inglês, /s/ antes de E e I, e, se não cedilhado, /k/ antes de A, O e U; e pode representar muitos outros sons. Mas não quero passar aqui em revista todos os possíveis sons que o C pode representar (vejam aqui) — interessam-me antes os novos sons de C que fomos encontrando na nossa viagem.
O primeiro contacto com um novo valor de C foi na nossa primeira paragem, em Pardubice, na Chéquia. A nossa amiga Alice, que nos acolheu, explicou-nos que o nome da terra se pronuncia [pardubitse[9]]. E nós ficámos a saber que era assim em checo, mas só mais tarde descobrimos que o C se lê assim em todas as outras línguas eslavas escritas com o alfabeto latino[10].
– Mas então –, perguntei eu à Alice, – mas isso significa que o teu nome se pronuncia [alitse] em vez de [alisse]…
– Em checo, sim –, disse ela, – mas, a pessoas que falam outras línguas, digo sempre como elas esperam ouvir.
E a minha mulher, que é amiga dela há quase quarenta anos, não sabia que a Alice de Pardubice é, afinal, a Alitse de Pardubitse.
Em Pardubice aprenderam também os meus companheiros de viagem (eu já sabia) que o C com um circunflexo invertido, Č, se pronuncia [tch]. Mais tarde, descobrimos que há também um C com acento, Ć, que representa um som ligeiramente diferente no alfabeto latino servo-croata, mas que a maior parte de nós ouvirá e pronunciará também como [tch].
Zona, em servo-croata, escreve-se como em português e pronuncia-se também quase da mesma maneira. Mas o esloveno é diferente do servo-croata e a palavra pronuncia-se [tsona] e escreve-se com C. |
Também foi mais fácil para toda a gente aprender o valor do Ç do alfabeto turco, que é igual ao do Č dos alfabetos latinos de línguas eslavas, que o valor do C turco, que é [dj], como em inglês jeans ou gin. Aprendi isto na primeira noite na Turquia. A rececionista do hotel soletrou-me o código do wifi e quando ela disse [dj] eu escrevi um J, provavelmente porque o inglês é a língua que falo que tem esse som e J é uma das maneiras de o escrever.
– Não, não [j], [dj], [dj]!
E fez-me o sinal com a mão no ar. Um C? Escrevi um C.
– Sim, [dj].
Evidentemente, se uma portuguesa dissesse a um turco que não conhecesse a escrita portuguesa para escrever [cê], ele escreveria S e não lhe passaria pela cabeça que a letra a que ele chama [djê] se pudesse usar para representar tal som…
Para terminar este longo devaneio, deixem-me só acrescentar que, para os meus companheiros de viagem, esta coisa de alfabetos e pronúncias não tinha interesse por aí além e eu aprendi rapidamente que era coisa que devia guardar para mim próprio, para não os chatear.
Vejam se adivinham que companhia sueca de roupa tem este símbolo na Geórgia. |
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[1] Quinze, de facto, mas só estivemos cerca de um quarto de hora na Bósnia e Herzegovina, de maneira que não conta. Também atravessámos apenas, quase sem parar, a Eslováquia, a Sérvia e a Áustria, mas deu para me ir entretendo com letreiros vários. Em termos de alfabetos, porém, a Eslováquia e a Áustria não têm nada de muito novo: o alfabeto eslovaco é quase igual ao alfabeto checo (e ao alfabeto servo-croata) e na Áustria usa-se a mesma variante do alfabeto latino que nos outros países de língua oficial alemã.
[2] A propósito da recente polémica sobre o nome do país, quero lembrar que Chéquia é a designação oficial em Portugal (a par, claro, de República Checa, da mesma forma que França também pode ser República Francesa ou Dinamarca pode ser Reino da Dinamarca). Também é de ler, sobre o assunto, um texto de Margarita Correia no DN.[3] A mesma situação existe na Bósnia e Herzegovina. Na Sérvia, os dois alfabetos convivem em todas as esferas, exceto na esfera jurídica, em que o cirílico é obrigatório; em Montenegro e na Bósnia e Herzegovina, há uma prevalência do alfabeto latino.
[4] O som [x] é um som muito comum, que existe em muitas línguas, muito próximo do som do R gutural português em carro, por exemplo, e igual ao G neerlandês, a alguns CH alemães (como em Bach, por exemplo) e ao jota de vários falares castelhanos.
[5] Note-se, de passagem e um pouco a despropósito, que o criador de Lucky Luke, Maurice de Bevere, usava o nome artístico Morris.
[6] Como o nosso S em início de sílaba, quando não precedido de vogal (só, penso) ou os nossos SS (isso)
[7] O som /k/ é o som do nosso C em carro ou do nosso QU em quente. No chamado «latim eclesiástico», pronuncia-se o C do latim como em italiano moderno ([tch] antes de I e E, /k/ nos outros casos), mas na verdade, em latim pronunciava-se /k/. Bom, como quase todas as línguas, o latim nunca nasceu nem nunca morreu, apenas evoluiu, e a sua pronúncia foi obviamente mudando sempre, pelo que é pouco rigoroso dizer que isto ou aquilo se pronunciava assim em latim, mas isto é só para simplificar a conversa... Caesar, por exemplo, pronunciava-se [kaissar] e coelus, «céu», pronunciava-se [koiluss]
[8] Também na pronúncia andaluza e canária do castelhano europeu. Em castelhano europeu standard, porém, antes de E e I, o C tem o som /θ/, pronunciado com a língua entre os dentes (o chamado «S de sopinha de massa»), como o Θ grego, o Þ islandês e muitos TH em inglês.
[9] O último som é não é exatamente como o do nosso E átono, mas algo entre o nosso E átono e o nosso A átono. Talvez mais [pardubitsa] que [pardubitse]…
[10] Como se pronunciava também em português arcaico (pelo menos, na sua primeira fase) antes de E e I, ou quando cedilhado: cidade era [tsidade], faço era [fatso], etc.
3 comentários:
Muito bom!, vamos trancrever no Cibersúvidas da Lingua Portuguesa.
É interessante, uma pessoa sabe que existe uma enorme variação no uso do alfabeto latino (não por ser latino mas por ser o meu) para a representação dos mais variados sons mas, depois da surpresa inicial, uma pessoa esquece-se por exemplo da diferença enorme entre uma leitura de "beaucoup" como se fosse português e como é pronunciada pelos franceses. De vez em quando há uma chamada de atenção para estas diferenças, como por exemplo com a brincadeira de explicar que GHOSTI se lê em inglês como "fixe" em português (fish), GH como em enough, O-women, S-island, TI-nation.
As minhas últimas surpresas foram com Dijkstra, um holandês que escrevia sobre programas de computadores e ainda nas formas pinyin do mandarim Qing (suponho que seja Tching, relacionado com a dinastia manchu) e Zhuhai (povoação adjacente a Macau) em que não conseguia imaginar um som para o Zh, suponho agora que seja "dj". Na Croácia aprendi que IVAN é uma forma de Juan, devo ter visto Ivan Pavao, seguido de Ioannes Paulus em latim.
O "Ivan Pavao" obtido no Google Tradutor pareceu-me suspeito e fui consultar a wikipédia que quase nunca falha em nomes de plantas e em nomes de pessoas importantes. Confirmei que em "Hrvatski" (vá lá que fui à procura duma língua começada por H e não havia muitas) se escrevia mesmo "Ivan Pavao". O Google Tradutor ainda traduz "João Paulo" em português para alegado latim "John Paul".
Bom, em francês ou em inglês, a questão não é bem a do valor de base das diversas letras, mas o facto de se continuarem a escrever palavras como se pronunciavam há muitos séculos, às vezes como se pronunciavam na Idade Média.
Em pinyn, zh transcreve um som que nos é estranho, e de que o mais próximo em português seria [tch] (ver aqui: https://tinyurl.com/228h8jfd).
A questão de os nomes com uma origem comum terem formas diferentes em diferentes línguas é uma questão propriamente linguística e não tem relação com formas de escrita. De facto, Ivan não está mais longe do original hebraico Yohanan (ou algo assim...) que o nosso João e o nome originalmente latino Paulus (ou Paullus) deu nomes muito variados em muitas línguas.
O google translator traduz sempre para inglês antes de traduzir para outra língua. Mas funciona com probabilidades de ocorrência e precisa de contexto. Imagino que a base de dados em latim seja muito pequena e, sem mais informação, só com dois nomes próprios, o resultado é mau. Melhor, é nulo... Mas, se escrever "Papa João Paulo", que chega para definir contexto, por ser uma sequência tão específica, já o Google translate dá Ioannes Paulus Pp. em latim, uma tradução correta.
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