[A mente humana] parte de certos pressupostos sobre o mundo. Estes pressupostos residem em módulos mentais que os humanos usam para processar coisas do mesmo tipo. Para activar adequadamente estes módulos mentais, os seres humanos têm de atribuir a todas as coisas que vêem a categoria ontológica adequada (ou seja, substância, planta, animal ou pessoa).A teoria que McFarlane está a divulgar é a que defendem S. Atran e A. Norenzayan, entre outros. Estes autores propõem no seu artigo “Religion’s evolutionary landscape: Counterintuition, commitment, compassion, communion”[in Behavioral and Brain Sciences (2004) 27, 713–770, tabela na pág. 721] uma «tabela das categorias ontológicas e domínios conceptuais humanos» em que as quatro categorias ontológicas pessoa, animal, planta e substância são definidas a partir da presença ou ausência de propriedades associadas aos domínios conceptuais intuitivos: a “mecânica natural” (folkmechanics), com o conhecimento inato dos limites e movimentos dos objectos; a “biologia natural” (folkbiology), que inclui os nossos pressupostos sobre configurações e relações biológicas das espécies; e a “psicologia natural” (folkpsychology), com as expectativas sobre a interacção entre agentes e o comportamento intencional. No total, estes três domínios incluem cinco traços (inerte, vegetativo, animado, psicofísico e epistémico). Continua McFarlane a explicar:
Se um objecto é identificado como “substância”, activa todo uma gama de pressupostos sobre matéria que, no seu conjunto, os cientistas designam como “mecânica natural”. Exemplos de pressupostos sobre objectos sólidos é que têm limites, que não podem passar uns através dos outros, e que não se movem a não ser por acção de uma força exterior. As outras três categorias, planta, animal ou pessoa, implicam pressupostos cada vez mais complexos sobre objectos: as plantas e os animais são processados através da “biologia natural”, cuja intuição nuclear é que “as coisas vivas encerram uma essência oculta que lhes dá a forma e o poder que têm, e orienta o seu crescimento e as suas funções orgânicas”. A “psicologia natural”, o nosso sistema inato para compreender os outros humanos, interpreta e prevê as acções humanas tendo em conta desejos e crenças. Estas psicologias intuitivas são normalmente cumulativas – quer dizer, os humanos têm tudo o que os animais têm mais crenças e desejos; os animais têm tudo o que as plantas têm mais a capacidade de se moverem por eles próprios; e as plantas têm tudo o que os objectos sólidos têm mais uma “essência viva”. A mente é, no entanto, capaz de processar o que o psicólogo Pascal Boyer chama “contraintuição mínima”: pode desactivar um ou mais destes mecanismos intuitivos mantendo os outros intactos. Por exemplo, os traços constitutivos de uma pessoa abstraindo da “mecânica natural” produzem um fantasma ou um espírito, ao passo que os traços constitutivos de uma planta mais crenças e desejos produzem uma árvore pensante.A ideia é que (é McFarlane mais uma vez a falar) «esta psicologia modular e intuitiva é importante também porque permite que certos conceitos sejam deslocados da intuição para a contraintuição sem forçar uma pessoa a aprender tudo de novo». Quando alguém cria um deus (por exemplo, identificando como uma cara uma formação de nuvens e explicando, por esse ser, a origem da trovoada que não compreende e o assusta) «não tem de reaprender o que significa ter desejos e crenças – compreenderá o seu novo deus como sendo essencialmente humano, mas sem um corpo sólido. Tudo o que [essa pessoa] sabe intuitivamente sobre humanos passará a fazer parte da sua criação. Isto faz com que a adopção de conceitos bastantes estranhos pareça quase natural e facilita a criação de deuses».
Além disso, defendem Atran e Norenzayan com base em evidência experimental, se for violado um destes traços básicos da nossa naturalmente realista percepção do mundo, o ser assim criado, embora contraintuitivo, é tão interessante para nós que a nossa memória arquiva melhor as histórias que ele protagoniza – é mais fácil lembrar-se de histórias de fantasmas ou de portas que se abrem sozinhas do que histórias de pessoas e portas tão comuns e correntes como nós próprios e as portas que temos de abrir e fechar no nosso dia a dia. Esta ideia não é de modo algum surpreendente e até, de certa forma, trivial. Jorge Luis Borges, que de psicologia adaptativa não sabia nada, dá conta da mesma consciência quando descreve a génese do seu conto “El Zahir” (o sublinhado é meu):
Agora chego a “El Zahir” e (…) vou contar-lhes como me ocorreu esse conto. (…) O meu ponto de partida foi uma palavra (…): pensei na palavra inesquecível (…). Detive-me, (…) pensei: que estranho seria se houvesse algo que realmente não conseguíssemos esquecer. Que estranho seria se houvesse, no que chamamos realidade, uma coisa, um objecto – por que não? – que fosse realmente inesquecível.Se, para ter êxito, os conceitos religiosos devem ser contraintuitivos, não podem, no eantanto, sê-lo demais. Atran assinala, contribuição para a discussão do evento Beyond Belief do Reality Club, que, se «as experiências mostram que crenças minimamente countraintuitivas são ideais para as histórias serem retidas na memória humana», já «mudar duas ou mais caixas ao mesmo tempo normalmente só cria confusão»:
Esse foi o meu ponto de partida, bastante abstracto e pobre: pensar no possível sentido dessa palavra ouvida, lida, literalmente inesquecível, unforgettable, unvergesslich, inoubliable. É uma consideração bastante pobre, como já viram. Em seguida pensei que se há algo inesquecível, esse algo deve ser comum, já que se tivéssemos uma quimera, por exemplo, um monstro com três cabeças (…), o recordaríamos certamente. De modo que não teria graça nenhuma um conto com um minotauro, com uma quimera, com um unicórnio inesquecíveis.
Os milagres normalmente implicam uma única violação ontológica, como um arbusto que fala ou uma cavalgada pelo céu, mas deixam o resto do senso comum quotidiano perfeitamente intacto. Há experiências que mostram que se as ideias forem demasiado estranhas, como um bule de chá falante que tem folhas e raízes como uma árvore, não é provável que venham a ser retidas na memória a longo prazo.Na generalidade, não recuso a validade deste tipo de abordagem e a sua capacidade explicativa. Mas surgem-me algumas dúvidas. Chegámos então ao fim da divulgação e passamos à discussão. Não à discussão da teoria que, com a ajuda de McFarlane, acabo de resumir, mas de um único ponto dessa teoria, a proposta de vantagem mnemónica das violações de um traço único das nossas expectativas relativamente o mundo.
Deborah Kelemen, por exemplo, defende que «o teste empírico realizado [por Atran e Norenzayan] para mostrar que, em certos contextos, violações previsíveis destes conceitos têm algum tipo de vantagem mnemónica não parece justo*». Explica ela:
Mais concretamente, o estudo não inclui itens que provem realmente a impossibilidade de que um conceito precise apenas, para ser memorável (e por isso passível de se tornar religioso), de ter um traço incaracterístico e não um traço que viole um domínio conceptual. Os itens extravagantes incluídos no estudo, como “jornal que pisca” não são controlos adequados, porque a ambiguidade torna muitos deles quase ininterpretáveis e esse facto dá conta da facilidade com que são esquecidos. Em contrapartida, parece plausível que exemplos como “crocodilo voador” ou “cavalo venenoso” sejam bons candidatas a vantagem mnemónica, embora nenhum dos dois conceitos implique a violação de um limite de um domínio, o da “biologia popular” – são simples casos de animais com propriedades características de outros animais*.A objecção é pertinente, mas não é a única que se pode fazer. Desse panteão de atropelos ao senso comum que são os seres que povoam as diversas religiões, os que tiveram mais sucesso não violam um traço apenas das categorias ontológicas da tabela de Atran e Norenzayan. Estou a falar, principalmente, dos deuses complexíssimos das religiões mais importantes do mundo actual, que, a levarmos minimamente a sério as propriedades que lhes são atribuídas pelos teólogos dessas mesmas religiões, são bem mais do que apenas “um homem não-físico” – mais do que fantasma ou do que um espírito apenas… É bem provável que um bule de chá falante com folhas e raízes como uma árvore não venha a ser uma criação mítica com grande êxito, mas será que é mesmo por violar vários traços da nossa ontologia natural? O deus dos cristãos, por exemplo, viola todas as possíveis intuições naturais sobre o mundo, definidas ou não na tabela de Atran e Norenzayan, e tem sido bastante bem recebido e recordado, mas uma árvore ou uma pedra fantasma, ou um animal sem automoção, que violam apenas um único traço das categorias propostas, não têm tido a mesma fortuna…
Parece-me que, para se estudar o sucesso de um mito, se é obrigado a observar em conjunto as características dos fantásticos protagonistas mais as características da narrativa que eles protagonizam mais o contexto social de nascimento e difusão dessa narrativa – incluindo relações políticas e económicas. Mogwli, Long John Silver ou o capitão Achab são ideias fortes à partida, mas talvez não tivessem tido o mesmo sucesso em histórias menos boas do que aquelas que foram dados a conhecer – ou noutra época ou se os países em que tiveram origem não fossem ou não se tivessem tornado poderosos… Para explicar o sucesso de certas religiões relativamente a outras, o mérito mnemónico do mito transmitido não é, provavelmente, a mais importante razão do êxito da religiões que o têm tido: com exércitos de guerreiros e mercadores, e poderosas máquinas políticas e publicitárias por trás, podem violar-se os traços que se quiser do nosso congénito bom senso…
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* Em http://www.bu.edu/childcognition/publications/Atran_commentary.pdf, visto a 22 de Janeiro de 2008. O texto, entretanto retirado do site de Kelemen, pode ser visto aqui (02.04.2013)
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