Perguntarão alguns de vocês: «Então mas os brasileiros não é também o que fazem?» Não exactamente, mas é verdade que muitas vezes também pronunciam abertos os oo. Só que, no caso do português do Brasil, não há nada estranho para mim. Eu sei porque é que se pronuncia assim. No português do Brasil, pronunciam-se abertos os oo que não estão em posição final [côlôrídu], porque era assim que se pronunciava em português quando os portugueses colonizaram aquela terra; e a pronúncia das vogais, que evoluiu muito desde essa época em Portugal, manteve-se mais ou menos inalterada do outro lado do Atlântico.
Então, não pode ser que essa pronúncia moçambicana seja também arcaica, como no português do Brasil? É uma hipótese que se pode descartar à partida. Não só a colonização de Moçambique começou já depois de consolidado o português moderno, no início do século XX, como o português falado em Moçambique nunca se afastou por aí além do português europeu. A única zona onde o português se fala há mais tempo é o vale do Zambeze e alguns pontos no litoral. Não sei como seria o português dos senhores feudais dos prazos, nem o dos seus exércitos de escravos “chicundas”, nem o das populações das primeiras cidades portuguesas (Ilha, Quelimane, Sofala, Vila Senna, Tete, Zumbo), mas o facto é que não se nota dos descendentes dos “muzungos da Zambézia” que eu conheci nenhuma particularidade linguística: como acontece com outros moçambicanos de língua materna portuguesa, as pessoas mais velhas falam mais como os portugueses e as gerações mais novas com um sotaque menos próximo do português europeu. Não, arcaísmo não é, até porque são sobretudo as gerações mais jovens que falam mais assim. Além disso, mesmo no Brasil, onde a pronúncia dos oo é arcaica em relação à pronúncia portuguesa, ninguém pronuncia [ô] os oo não acentuados no fim das palavras. No Brasil, toda a gente pronuncia amigo [amígu]. E aqui, quando venho com o Alexander da escola, os miúdos gritam [àmígô]. É estranho…
Já deixei claro que não são todos os moçambicanos que falam assim. Acrescento agora que, aliás, não há uma maneira moçambicana de falar português – há muitas. E nem sequer há um padrão moçambicano. Ou antes há, mas é ainda o português europeu, que é aquilo para que tendem locutores de rádio e de televisão. Entre quem fala português como um português e quem não fala português de todo, há todo o grau e variedade de português que possam imaginar. Sendo língua materna de apenas uma percentagem pequena da população, a variação do português é, quase sempre, em função da língua materna de quem o fala. E é essa, claro está, a primeira hipótese que qualquer pessoa colocaria para os oo abertos: é por influência das línguas locais. O problema é que a hipótese não funciona. Funciona perfeitamente para explicar os aa átonos abertos e os ee átonos abertos ou pronunciados [i], mas não funciona para o [ô] em vez [u].
Se os moçambicanos, em geral, não dizem [â] mas sempre [á] é provavelmente porque não há nenhum som [â] na língua deles. Nesse aspecto, não são em nada diferentes dos franceses ou dos finlandeses ou de pessoas de muitas nacionalidades: o [â] é-lhes um som estranho, pronunciam (e provavelmente ouvem) [à].
O mesmo com o chamado “e mudo”. Não só não há nada parecido nas línguas da região como ele tem de ser pronunciado, porque a estrutura das sílabas nas línguas bantas é muito rígida e há muitos encontros de consoantes que ela não admite (como no português do Brasil em que, embora se escreva pneu e advogado, as palavras são, de facto, pineu e adivogado…). Assim, que se diga [difêréntê] ou [difêrénti] ou [têlêfonê] ou [têlêfóni] ou seja lá que formas deste tipo, é de facto a influência das línguas locais que o explica: [tәlәfonә] com os “ee mudos” pronunciados ou [tlefon], com eles todos comidos, que é como nós dizemos, é tão impronunciável para a maior parte dos moçambicanos como para um espanhol, um italiano… ou um brasileiro.
Agora, o som [u] não só existe em todas as línguas da região como pode ocorrer em qualquer posição na palavra: em sílabas tónicas ou átonas, antes ou depois da sílaba tónica. Não custa a ninguém da região pronunciar [culurídu]. Por que não o fazem, então?
Uma explicação que eu tenho a certeza que se tornaria muito popular se eu a propusesse aqui seria a da influência brasileira – através das telenovelas. Esse tipo de explicações ganha rapidamente o estatuto de mito tenaz, e propaga-se às vezes através de gerações. Infelizmente, eu não creio nessas coisas. Os ingleses vêem provavelmente mais filmes americanos que os moçambicanos vêem filmes brasileiros e o sotaque britânico e americano continuam a distanciar-se. Em Portugal, onde se vêem muitas telenovelas brasileiras há muito mais tempo, não há registo de nenhuma “abertura” dos oo por causa disso. As coisas não são assim: os sotaques não se importam de fora, modificam-se de dentro.
A única hipótese que vejo é a de se tratar de uma influência da grafia. Acho que os moçambicanos pronunciam [ô] o que vêem escrito com um o. É estranho? Talvez não tanto como isso. Sou professor de português para estrangeiros há muitos anos e conheço bem o fenómeno: pouco importa que língua seja a deles, os meus alunos, sistematicamente, pronunciam assim também os oo – porque vêem escrito um o. Acontece até que palavras que pronunciavam bem e para as quais, por as pronunciarem bem, imaginavam outra grafia, começam imediatamente a ser mal pronunciadas mal as vêem escritas. Bom, é verdade que, em certos casos se pode pensar que é mais a influência da língua do estrangeiro que fala português do que da grafia do português. Se um francês disser [cômôdidáde], podemos pensar que a abertura dos oo lhe vem do francês commodité; mas, como explicamos a seguir que ele pronuncie bonito [bônitô], se não há palavra semelhante em francês nem nunca ouviu nenhum português pronunciar abertos os oo? Viu-os. Viu os oo. Viu escrito e pronuncia o que viu, não o que ouviu.
A escola pode ser um meio muito eficaz para a divulgação desta estranha abertura dos oo. Os professores têm normalmente pouca formação, tanto em pedagogia como em língua portuguesa (e nas outras matérias escolares…). Muito provavelmente são eles que, portadores de um erro típico da aprendizagem do português como língua estrangeira na escola, o difundem e perpetuam – até porque é muito mais fácil ensinar que corresponde um som para cada letra. Á-mi-gô; cô-lô-ri-dô. Pode bem ser assim que esta pronúncia anómala se difunde. Com o paradoxo engraçado de que, a ser mais do que delírio a minha hipótese, é num país com um nível de analfabetismo tão alto que a grafia consegue influir na pronúncia…
Mas é claro, havia que estudar a coisa bem estudada, para se chegar a conclusões mais estáveis. Para já, é esta a única explicação que vislumbro para o mistério…
[Adenda de 9 de abril de 2009, revista a 23 de fevereiro de 2024]
Uma longa viagem de carro é, como todos sabem, uma oportunidade privilegiada para ouvir música e o mais que lhe venha agarrado. A pronúncia dos oo átonos, por exemplo. E quero agora, sem querer deitar fora a hipótese atrás esboçada, que é capaz de ser pertinente nalguns casos, acrescentar-lhe outra explicação possível para a abertura dos oo átonos e provavelmente coexistente com a primeira, que me surgiu numa viagem de Chimoio para Chinoyi.
Os nossos filhos foram connosco e estreei nessa viagem uma cassete com uma compilação que tinha feito umas semanas antes de hits infantis cá de casa. Entre esses êxitos, chamou-me a atenção uma canção de um grupo de crianças de Maputo. Não a canção propriamente dita, mas a pronúncia dos miúdos que a cantam. São crianças de Maputo, se não de língua materna portuguesa, pelo menos muito expostos a ela. Têm, é claro, uma pronúncia muita aberta dos aa, e um l pronunciado muito à frente, alguns traços que muitos portugueses reconheceriam como “sotaque africano” sem saberem especificar de onde, mas não têm nada daquelas pronúncias estranhas dos oo átonos: todos os oo átonos da canção são pronunciados [u], exactamente como se pronunciam no português standard europeu e no português dos moçambicanos mais velhos de língua materna portuguesa. Todos... excepto dois. O o de jogar e o o de tocar são pronunciados abertos: [tòcar] e [jògar]. A hipótese da influência da grafia de uma língua essencialmente escolar pode, neste caso, pôr-se de lado à partida, porque senão, por exemplo, boneca seria também [bòneca] e não é. Então?
O que distingue os oo de tocar e jogar de todos os outros oo átonos que aparecem na canção é que, sem mudar de lugar na palavra, digamos assim para simplificar, podem às vezes ser tónicos e, por consequência, abertos: eu jogo, tu jogas, eu toco, eles tocam. Quer dizer, a pronúncia aberta destes oo resulta muito provavelmente de uma generalização tomando como base a forma do presente do indicativo e do conjuntivo. O que eu não sei é por quê. Pode postular-se que as formas do presente ocorrem mais e que, por isso, são os seus oo abertos que servem de modelo a formas menos ocorrentes, como o infinitivo em questão. Se não houver um sistema interiorizado, é natural que a pronúncia da forma com maior ocorrência prevaleça como “norma”. É uma possibilidade, se bem que relativamente fraca. Outra possibilidade é que haja alguma coisa do sistema das línguas bantu a influenciar – ou até determinar – esta generalização. Custa-me imaginar que tipo de influência possa ser, mas isso não é de espantar, porque eu não sei absolutamente nada sobre as línguas da região. E deve haver outras possibilidades que não consigo agora vislumbrar...
3 comentários:
Adorei conhecer a sua página, este blogue e o outro dos Moçambicanismos. Sou Português nascido em Moçambique onde vivi até aos 25 anos e adoro a sua cultura e formação. Irei muitas vezes ao Moçambicanismos ler, recordar e aprender sobre a minha terra. Tenho no entanto uma opinião diferente sobre " a lingua não se altera de fora..." porque qual será a razão da perda do acento dos Madeirenses e Açorianos?? Influência da Televisão??? Gostaria de alguém que estudasse. Abraço, Hambanine e Kanimanbo. Jorge Preto (preto.jorge@netcabo.pt)
Caro Sr. Lindegaard,
Em primeiro lugar, gostaria de lhe dar os meus parabéns pelo seu trabalho aqui publicado. Sou professora de língua portuguesa em Moçambique e residente neste país há mais de quarenta anos. Foi esta a primeira vez que acedi ao seu glossário de moçambicanismos e, a partir dele, a este blogue, porque só há pouco mais de um ano me deixei interessar por este tipo de pesquisas usando o google. Até aqui usava sempre os livros e dicionários tradicionais (em papel).
Quanto à(s) causa(s) da pronúncia do átono como [o] e não [u] pelos jovens moçambicanos, penso que a sua sugestão de que os aprendentes de português leem (ou pronunciam)o que veem escrito poderá ser um caminho a seguir em pesquisas futuras a partir das suas observações empíricas com os aprendentes estrangeiros de português.
Sabemos que no português europeu (PE) esta vogal átona é normalmente pronunciada como [u] ou é reduzida (quase suprimida) em posição de final absoluto de palavra . No entanto, há alguns contextos fonéticos no PE em que se pronuncia [o] como no caso da sua ocorrência em início de palavra, que podemos exemplificar com a palavra [o]lhar. E há ainda palavras em que o átono se abre e se pronuncia como se fosse tónico, devido à sua derivação diacrónica, tendo havido a crase. Vejam-se as palavras s[ɔ]mente e s[ɔ]zinho no PE, que são muitas vezes pronunciadas pelos moçambicanos como s[u]mente e s[u]zinho. Aqui os falantes actualizam a regra geral da pronúncia das vogais átonas e não têm em conta a pronúncia da vogal [ɔ] em resultado da crase. Todas estas particularidades da língua portuguesa podem estar a provocar dificuldades na pronúncia das vogais átonas pelos moçambicanos mais jovens, principalmente pela quase ausência de modelos da variedade europeia falada.
Muito há ainda para se comentar sobre estes assuntos da língua. Esperemos que outros se interessem por eles.
Agradeço a oportunidade que tive de apresentar este comentário.
Bom trabalho!
Cara Elda Santos,
Muito obrigado pelo elogio e pelo comentário. Nunca tenho comentários de especialistas de língua e fiquei tão surpreendido como agradado quando vi o seu comentário. Conheço os seus trabalhos incluídos em Português Moçambicano, Estudos e reflexões. Peço desculpa de só agora responder, mas tenho andado muito ocupado e tudo o que se relaciona com o blogue tem estado parado.
Sim, tenho plena consciência da pronúncia [ɔ] em início de palavra e do [ɔ] átono resultante de crase após síncope de consoante intervocálica (e de outros casos até, menos sistemáticos, de termos científicos e estrangeirismos, por exemplo). Neste texto, tentei cingir-me só ao tema principal e não entrar muito em pormenores técnicos, para alargar o público-alvo, digamos assim, mas nem sempre é possível fazê-lo. Se vir o texto mais recente do blogue na altura em que estou a escrever isto (aqui: http://bit.ly/290ozGZ), a própria natureza da discussão obriga-me a abordar as questões que refere, precisamente, das razões da pronúncia aberta «excecional» das vogais átonas.
Também conheço a tendência de muitos moçambicanos para a regularização da pronúncia das vogais átonas em contextos onde elas excecionalmente se pronunciam «abertas», como nos casos que refere, ou outros como esqu[ə]cer, etc. Essa tendência não é, aliás, exclusiva de falantes do português como língua segunda. O mesmo se verifica em Portugal. Se é certo que em Portugal ninguém diz s[u]zinho ou esqu[ə]cer, porque são palavras com uma grande taxa de ocorrência, isto é, exceções facilmente interiorizáveis, há outras em que a pronúncia de vogais pretónicas é instável, como as que discuto no texto atrás referido e outras (cromático, por exemplo, mas há muitas outras).
Agora, para haver essa tendência para a regularização de [ɛ] e [ɔ] pretónicos em [ə] e [u], tem de haver input suficiente para interiorização da regra e insuficiente para a interiorização da exceção. Como diz, tudo isto é complexo e é difícil aprender regras e exceções quando não há input suficiente. Nunca vivi em Maputo, só no Alto Molócuè e no Chimoio, mas creio que, nesse aspeto, a realidade do português da capital é ainda substancialmente diferente do resto do país, mesmo de cidades grandes. Se aí já funciona em grande medida a tendência para o excesso de regularização, digamos assim, em muitos lugares de Moçambique, o português continua a ser uma língua realmente estrangeira, pelo menos no sentido em que mesmo o modelo para regras básicas é muito insuficiente. Daí que me tenha surgido esta tentativa de explicação para algo que, doutra forma, não vejo como se possa explicar.
Mas, enfim, o português está a crescer em Moçambique e criar a sua própria variedade e ainda bem — para os moçambicanos e para o português.
Muito obrigado pelo seu comentário, e muitos cumprimentos da Dinamarca.
P. S. : O glossário está estagnado, infelizmente. Para crescer, preciso de lhe alterar a ideia de base (acrescentar informação dos dicionários existentes, e não só do que fui eu próprio encontrado e das sugestões de leitores) e, sobretudo, mudar de formato, porque o formato atual é pouco prático. Mas não posso, neste momento, lançar-me em tão grande trabalho.
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