A minha saudosa avó materna tinha umas quantas expressões curiosas.
Pial de pote, por exemplo. A expressão “correcta” para designar o lugar onde, nas casas antigas, se colocava a bilha da água fresca é poial de pote (poial é da família de pódio e significa “lugar onde se põe algo” ou “banco de pedra”), mas a minha avó chamava-lhe pial de pote. Chamem-lhe erro, se quiserem, mas não é um “erro” disparatado, porque pode facilmente imaginar-se que pial se relacione com pé (seria peal, nesse caso, e outra maneira, enfim, de dizer pedestal); ou então que derive de pia – a final de contas, é de um suporte de um recipiente de água que se trata…
Além de usar a expressão para referir o pequeno suporte de cimento e mármore que tínhamos na cozinha, a minha avó usava também pial de pote na fase Está aqui debaixo do pial de pote a enfeitar a cantareira!, que respondia a perguntas sobre o paradeiro de algum objecto e que significava, no falar lisboeta dela, “Eu sei lá onde é que essa porcaria está!”. A frase também tem duas coisas que se lhe digam: A primeira é que ou é uma redundância (se o pote da água e o cântaro forem uma e a mesma coisa, e, por conseguinte, o poial de pote e a cantareira apenas dois nomes de um mesmo espaço), ou então havia, nas casas mais antigas do que aquelas que eu conheci, por baixo do poial de pote, uma cantareira. A outra é que, tendo em conta sobretudo o tom com que ela o dizia, a frase tem com certeza conotações malandrecas, que deixo as minhas leitoras e os meus leitores adivinharem quais são. [Isto confirma que, como dizia não me lembro quem, não há menos figuras de retórica na linguagem das vendedeiras do mercado do Forno do Tijolo (a minha avó era de Sapadores) que na de qualquer obra muito literária... Mas isso é outra conversa…]
Outra expressão da minha avó de que eu gosto muito é Não penhas dúvidas! Mas isso existe, perguntarão vocês. Se existe? Pois se vos digo que é uma expressão que a minha avó usava! Não é uma frase muito canónica, é verdade, mas é muito mais expressiva e mais rica do que as duas frases com que concorre mais directamente, porque as funde numa só: não ter dúvidas e não pôr dúvidas são coisas diferentes e pode pedir-se a alguém que nos acredite sem duvidar ou que cale as dúvidas que possa ter. Mas é mais eficaz juntar-se Não tenhas dúvidas! e Não ponhas dúvidas! numa frase só: “Aconselho-te a não duvidares, mas, se o fizeres, guarda isso lá para ti, sim?”
Outra coisa que a minha avó fazia era tentar dar sentido ao que para ela não fizesse sentido, de maneira que as palavras estrangeiras eram sistematicamente aportuguesadas, da forma mais lógica possível. Quando apareceu o Seven up, por exemplo, ela começou logo a tratar por Sabe a nada o novo tipo de pirolito. Então mas se aquilo de facto não tinha grande sabor…
Finalmente, gosto muito da expressão Ó filho, tu ainda és de bom tempo! Ao contrário das anteriores, esta expressão não a ouvi só à minha avó, e conheço-lhe até uma variante mais divulgada, ainda és do bom tempo. É, claramente, uma referência a uma mítica Idade de Ouro em que não havia maldade nas pessoas, em que os seres humanos eram ingénuos e puros como os anjos, os meninos, os patos, os ursos ou os camelos, que são alguma das metáforas mais comuns hoje em dia para quem se deixe endrominar com facilidade…
Mas que sou de bom tempo, sou, não penham dúvidas! Ainda sou do tempo dos piais de pote e das cantareiras, muito antes de aparecer o sabe a nada…
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4 comentários:
em casa da minha avó também havia um pial do pote e por baixo da torneira do pote punha ela um balde de esmalte para amparar a água. se em vez de um balde, puseres um cântaro, ou se, nesse sítio houver uma pedra, ou uma merda qualquer para apoiar um cântaro...
já agora e em salvação e memória da minha saudosa mãezinha, deixa que te ilustre com mais uma pérola de improvisação linguística: BALAÚRDE - o mesmo que - balúrdio
OCSUNDEI (enfim, era assim que soava...) - obscenidade em inglês cujo significado só ela sabia e nunca disse
Obrigado, ó ninguém, pelo esclarecimento do cântaro (pode ser) e pelas pérolas da tua mãe. Balaúrde é uma palavra muito bonita, mais bonita ainda do que balúrdio. Dá-me lá um contexto para o uso do ocsundei, que é para eu ver se consigo chegar à origem do palavrão. Como diria a minha avó, essa do ocsundei é mesmo de cabo de esquadra!
Ó pá, tu quando escreves, deixa-me que te diga...
Só isto (vou guardar os outros postes para outro dia), essa do pial (pial, pois então!) sempre pensei que tivesse a ver com pia, assim sem nunca pensar muito sobre o assunto...
Relvas
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