Desde os ensinamentos de Sidarta Gautama (que dizem que foi buda…) aos trabalhos de vários cientistas modernos, inúmeras vezes tem sido posta em causa a pertinência da velha dicotomia entre o racional e o irracional, o sentido e o pensado, a razão e os sentimentos. Não pretendo defender aqui que a ruptura entre os dois domínios existe de facto, mas digo que, como ferramenta conceptual, ela é importante; e a distinção pode fazer-se com bastante clareza se a linha divisória entre os dois domínios for a capacidade de transmissão do que nos vai dentro. A experiência e os sentimentos são tão pessoais e intransmissíveis como os bilhetes de identidade ou de avião. Há muito quem pense que há formas de os transmitir através de outros tipos de discursos que não a linguagem normal (através da música ou da poesia, por exemplo), mas não há nenhuma prova de que essa transmissão seja possível. O que há, na maior parte dos casos, é antes uma ilusão de transmissão de experiências e sentimentos. Mesmo a partilha de uma vivência concreta não garante uma comunhão da experiência: o medo que eu senti nas estradas de montanha da Bolívia não foi partilhado por muitos dos meus companheiros nessas viagens. O conhecimento, as ideias, o racional, é o que, de dentro de nós, pode ser recebido por todos os outros sem perdas significativas na transmissão e acumular-se como propriedade de todos os humanos.
Pode argumentar-se que o mais importante de cada um para os outros é a maneira como age relativamente a eles. A sua vida moral, digamos assim. E parece-me que o progresso nas relações entre pessoas tem resultado mais de uma discussão racional do que de alguma evolução dos sentimentos. Como o nota Steven Pinker (video aqui, texto aqui) e ao contrário do que postula o senso comum nas catastrofistas conversas que nos enchem o quotidiano, há uma clara e constante diminuição da violência ao longo da história da humanidade. É claro, não é impossível que tenha havido uma evolução da maneira como sentimos os outros, com causas específicas que não estamos ainda em condições de compreender, e que essa evolução tenha tido influência benéfica na nossa relação com eles. Não é impossível, mas não me parece muito plausível. Parece-me muito mais provável que qualquer alteração no nosso sentir (a existir) seja mais um produto das mudanças (racionalmente motivadas, entenda-se) da nossa organização social do que a sua causa. Além disso, creio que é possível demonstrar, contra todos os milenarismos que vêm na acumulação de conhecimentos e na evolução técnica que ela permite a desgraça da humanidade, que o progresso técnico tem contribuído tanto como o progresso moral para melhorar a vida das pessoas. Se há menos gente a sofrer agora do que há 500 anos, é porque a servidão e a escravatura foram abolidas, a justiça social e a igualdade foram aumentando, a violência é cada vez mais encarada como algo a banir, mas também porque melhorou a higiene e evoluíram a medicina, as técnicas de produção, etc.
Aonde quero eu chegar com este delírio? A uma conclusão simples: o Homo sapiens continua provavelmente a sentir pouco mais ou menos como sentia há 100 000 anos atrás, mas evoluíram muito o seu conhecimento e as suas instituições – o que é transmissível, comunicável, passível de ser efectivamente discutido. E ainda bem!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário