Quando estive no Acre, há já alguns anos, ouvi várias vezes a acreanos que eram “os únicos brasileiros por opção”. O Acre fazia parte da Bolívia até ao início do séc. XX e um dia os acreanos fizeram uma revolução para se tornarem brasileiros (a história não é exactamente assim, mas admitamos, para simplificar, que foi assim que as coisas se passaram). Nem por isso os acreanos são brasileiros por opção. Quer dizer, os que fizeram a revolução e tomaram o poder na região, para se juntarem ao Brasil, foram, de facto, brasileiros por opção. Mas isso foi há 100 anos. A partir daí, mais nenhum acreano foi brasileiro por opção.
O que acabo de dizer dos acreanos, posso também dizer da gente de Bornholm (que, a determinada altura, fez uma revolução para deixar de ser sueca e se tornar dinamarquesa) e dos suíços dos diversos cantões (que foram progressivamente aderindo à Confederação Helvética). E dos povos de todas as nações que se libertaram do jugo colonial. Houve moçambicanos que o foram por opção: os que fizeram a luta de libertação, sobretudo, mas também aqueles que, não participando nela directamente, concordavam com ela e, na altura de escolher, preferiram ser moçambicanos a continuarem a ser portugueses. A partir daí, já não houve moçambicanos por opção. O facto é que muito pouca gente escolhe a sua nacionalidade. Quantos portugueses é que o são por opção?
Isto vem a propósito de orgulho. As identidades étnico-nacionais, regionais, etc., parecem ser aquilo em que mais comummente se tem orgulho. Pelo menos, se googlarem “tenho orgulho em ser” vão deparar com uma maioria de ocorrências de um gentílico depois do ser. Mas o que é isso de ter orgulho numa identidade? Ou pode até fazer-se uma pergunta mais abrangente, para começar: o que é que significa, ao certo, ter orgulho nalguma coisa?
O meu dicionário não ajuda nada: diz que orgulho (excluindo as acepções de “conceito exagerado que alguém faz de si próprio”, “vaidade” ou “soberba, altivez”, que obviamente não são as que tem a palavra quando se afirma, por exemplo, o orgulho na sua identidade) é “dignidade, brio, pundonor”. É óbvio que não é verdade, porque não se pode dizer “tenho dignidade/brio/pundonor em ser rinchoense”. Se procurar orgulhar-se, que é o mesmo que ter orgulho no sentido que aqui me interessa, encontro “envaidecer-se”, “ufanar-se”, “gloriar-se”. Não me serve, fico na mesma... Já o Concise Oxford dá uma definição de pride (“orgulho”, em inglês) muito mais interessante. A tradução não é perfeita, mas é qualquer coisa como “um sentimento de exaltação ou satisfação perante realizações ou qualidades ou posses, etc., que dão bom nome a alguém”.
Muito bem, não há dúvida de que é isso. E o que me incomoda é precisamente que coexistam na mesma definição “realizações” e “qualidades”; que o orgulho possa resultar tanto da percepção de se ter realizado uma acção positiva como da percepção de se ser depositário de uma característica que se considera positiva; porque, se geralmente há mérito nas boas realizações, nas boas características não há quase nunca mérito nenhum. Que mérito há em ser bonito, elegante ou inteligente? Que mérito tem uma vaca em dar leite? Mérito implica controlo e temos, no geral, muito pouco controlo sobre o que somos – e nenhum sobre a nossa nacionalidade.
Sempre tive muita dificuldade em compreender que alguém possa ter orgulho em ser português ou moçambicano ou dinamarquês (ou em ter olhos azuis, ou em ser alto, ou em ser dotado para a matemática, ou em “viver a mocidade / dentro desta geração*”…). Em última análise (em última análise…), posso admitir que uma pessoa tenha orgulho nas coisas que ela própria considera louváveis e que ela própria decidiu fazer ou ser. Agora daquelas em que a sua vontade não foi chamada para nada (acasos, acidentes…), digam-me lá, que orgulho é que se pode ter?
Soa apatetado o título deste texto, não soa? Ora, bem vistas as coisas, entre só ter começado a chover depois de eu ter chegado a casa e eu ter nascido num determinado lugar, num determinado tempo ou com determinadas características, que diferença é que há em termos do controlo que tenho desses factos? Absolutamente nenhuma. E é assim, exactamente como o título deste texto, que me soam as afirmações de orgulho numa identidade qualquer.
P.S.: Uma das evoluções naturais da democracia deveria ser – talvez venha a ser, espero que seja – a possibilidade de se escolher cada vez mais a sua nacionalidade. Chama-se a isso empowerment**, no jargão do desenvolvimento: capacidade de decidir mais sobre a sua vida.
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* A famosa cantiga não diz orgulho mas sim vaidade: «(…) mas tenho grande vaidade / em viver a mocidade / dentro desta geração». É óbvio, no entanto, que vaidade, de que os dicionários que consultei dão apenas uma definição claramente negativa, é aqui sinónimo perfeito do orgulho de que aqui trato.
** Empoderamento, eis como a palavra inglesa se traduz normalmente aqui em Moçambique. Bem formada ou mal formada, a palavra é já um facto – nada a fazer contra ela…
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 1 dia