Ora há muito quem considere que se passa o mesmo com o resto da nossa cultura. Que a informação cultural que vamos interiorizando configura de determinada maneira os programas que trazemos connosco à partida, de modo que ficamos condicionados a determinadas formas de perceber o mundo e de agir. E que, partir daí, o que pensamos, sentimos e fazemos é determinado por essa cultura, da mesma forma que a maneira como pronunciamos uma língua estrangeira é sempre determinada pela estrutura fonética da nossas línguas primeiras. Quer dizer, não posso agora citar nenhuma definição de cultura que seja exactamente coincidente com a que acabo de fazer, mas, pela maneira como oiço e vejo muitas pessoas falarem de cultura, não tenho dúvida nenhuma de que é assim que a concebem.
Uma concepção de cultura deste tipo é muito sedutora, de elegante que é, mas não é sem problemas. Há provavelmente uma parte da cultura que é assim, mas que parte? Uma parte grande ou uma parte pequena? Bom, eu estou convencido de que uma boa parte dos nossos comportamentos não é determinado, em sentido forte, por regras interiorizadas.
Vejam o caso das bichas[1], por exemplo. Muitas pessoas acham que fazer ou não fazer bicha varia de cultura para cultura. Pelo menos, afirma-se muitas vezes que, em X ou X lugar há ou não há “uma cultura de fazer bicha”. E é com certeza verdade que há lugares onde se faz bicha e outros onde toda a gente se está, em menor ou menor grau, nas tintas para a ordem de chegada e impera a lei do jacaré la bouche, como dizia um amigo meu – quem tem a boca maior é que se safa... Mas é problemática a relação deste facto com cultura, sobretudo se esta for concebida como o tal conjunto de regras fortes interiorizadas que determinam olhares e gestos. O que se constata facilmente é que, quando uma pessoa de uma “cultura sem bichas” se muda para um sítio onde haja uma “cultura de fazer bicha”, ela começa logo a fazer bicha, sem problema nenhum. E pode também observar-se que, de volta à “cultura sem bichas”, deixa outra vez de as respeitar. O contrário, o “relaxe moral” de quem venha de uma cultura “cultura com bichas” quando chega a uma cultura sem ela, também já o constatei várias vezes. Quer dizer que isto de fazer bicha, por exemplo, a ser um traço cultural, não é assim nenhum padrão de comportamento tão profundamente interiorizado que uma pessoa não o mude, se quiser ou precisar, de um momento para outro!...
O mesmo em relação a muitos outros padrões de comportamento. Por exemplo, sobre comportamentos demasiado relaxados, displicentes ou mesmo claramente desrespeitadores por parte de turistas, todos nós já ouvimos, quando não o pensámos nós próprios, que “ele faz isto aqui, mas lá na terra dele não fazia”. O que é interessante é que é, muitas vezes, a mais pura das verdades: no estrangeiro, as pessoas portam-se como não ousariam portar-se no seu país – ou simplesmente de maneira diferente, enfim. Não só turistas, claro está, mas todo o tipo de pessoas de fora. E, se o fazem, é com certeza porque não têm regras de comportamento interiorizadas como têm interiorizados a pronúncia dos sons linguísticos ou os gostos de comida, por exemplo, que não se alteram, esses, de um dia para o outro…
Podia alargar a conversa a muitos outros exemplos, e com especial facilidade a aspectos maioritariamente considerados negativos – como a falta de respeita da ordem da bicha, mas bem mais graves – mas acho que não vale agora a pena detalhar mais, porque se percebe bem aonde quero chegar: pelo menos nos casos que referi, o que parece contar mais do que um padrão de comportamento fortemente interiorizado é a consciência da regra em vigor em determinado local, ou da sua ausência, e o grau de controlo social a que se está sujeito (cujo reconhecimento varia, também é preciso ter isso em conta, de indivíduo para indivíduo…). E isto independentemente de estarmos “em casa” ou não.
Parece então que, para muitos dos nossos padrões de comportamento, a regra não está dentro, mas fora de nós[2]. Parece que dentro de nós o que está é um instinto que nos manda avançar, em busca do proveito próprio e da satisfação dos nossos desejos… até onde os outros nos deixarem ir. No outro dia defini esse egoísmo fundamental como o nosso “parâmetro por defeito”. Um Hobbes da época dos computadores, como vêem, este vosso amigo…
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[1] As filas, como se diz agora em português europeu moderno que se pretenda politicamente correcto. É um facto muito estranho: quando se constata que a palavra é usada também para referir, de forma depreciativa, os homossexuais masculinos, deixa-se de a usar para referir um conjunto de pessoas alinhadas por ordem de chegada, que não tem absolutamente nada ver com o outro uso, porque aqui se trata obviamente de uma metáfora em que se usa a lagarta como segundo termo, ao passo que a designação de bicha para um homossexual tem com toda a certeza outra origem. [Provavelmente, vem da expressão, “Ai uma bicha!”, dita num tom exageradamente efeminado, para estigmatizar uma pretensa falta de virilidade dos homossexuais, implicando que eles (como as mulheres, na visão de quem diz coisas assim…) até de uma inofensiva lagarta têm medo.] Ora, se efectivamente o termo bicha é sentido como ofensivo por quem, como eu, se ofende com a discriminação das pessoas em função das suas preferências sexuais, está muito bem que se deixe de o usar nessa acepção – mas porquê deixar de usar a metáfora da bicha para a fila de pessoas, que não tem nada a ver com este assunto? Esquisito…
[2] A questão é, obviamente, onde, ao certo?, porque aceitar que ela está apenas, sei lá, em todo o lado e em lado nenhum, é um bocado metafísico demais para o meu gosto… Mas eu não sei responder a esta pergunta que me faço.
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