“Mas então isso são verbos?”, oiço eu os protestos, “Buiça, bom, talvez seja, sei lá…, mas sorry é um adjectivo! E um adjectivo inglês!”
É sim senhora – em inglês! Em português de Moçambique, I am very sorry, mas não é, é um verbo. Sorry lá, pá! É precisamente o lá de sorry lá que lhe trai a condição de forma verbal no imperativo, exactamente como o aí que às vezes acompanha o buíça: “Iá, eu vou lá comprar, mas buíça aí taco, que eu não tenho nem uma quinhenta…”
Como estes moçambicanismos são provavelmente muito estranhos para falantes de outras variantes do português, passo antes a outro verbo que também tem só uma forma e que é comum a todas as maneiras de falar esta língua: eis.
“O quê? Eis também é um verbo?”
Bom, quem não quiser chamar-lhe assim tem todo o apoio dos dicionários. Quase todos, se não mesmo todos, classificam eis como advérbio. Nas “Dúvidas linguísticas”, e respondendo a uma pergunta de uma Sónia, de Portugal, a 7 de Março de 2007 (“Escreve-se ei-la ou hei-la?”, perguntava a tal Sónia), Helena Figueira escreve o seguinte:
A palavra eis é tradicionalmente classificada como um advérbio e parece ser o único caso, em português, de uma forma não verbal que se liga por hífen aos clíticos. Como termina em -s, quando se lhe segue o clítico o ou as flexões a, os e as, este apresenta a forma -lo, -la, -los, -las, com consequente supressão de -s (ei-lo, ei-la, ei-los, ei-las).
A forma hei-la poderia corresponder à flexão da segunda pessoa do plural do verbo haver no presente do indicativo (ex. vós heis uma propriedade > vós hei-la), mas esta forma, a par da forma hemos, já é desusada no português contemporâneo, sendo usadas, respectivamente, as formas haveis e havemos. Vestígios destas formas estão presentes na formação do futuro do indicativo (ex. nós ofereceremos, vós oferecereis, nós oferecê-la-emos, vós oferecê-la-eis (...)).
Pelo que acima foi dito, e apesar de a forma heis poder estar na origem da forma eis (o que pode explicar o facto de o clítico se ligar por hífen a uma forma não verbal e de ter um comportamento que se aproxima do de uma forma verbal), a grafia hei-la não pode ser considerada regular no português contemporâneo, pelo que o seu uso é desaconselhado.Helena Figueira faz muito bem o que faz. É assim que se responde num consultório aonde as pessoas vão à procura de uma norma. Mas, ao dar uma resposta tão completa, está a dar, a quem a queira receber, uma dica para uma reflexão. No fundo, o que Helena Figueira diz é que eis é um verbo que deixou de ser percebido como tal.
É claro, tive de lá deixar um comentário (entretanto desaparecido quando as “Dúvidas linguísticas” foram transferidas para novo site). E fi-lo, acho eu, no tom certo para comentário de consultório linguístico:
Não deixa de ser curioso que se considere eis um advérbio. A única explicação parece ser que o conceito de advérbio é tão vago que funciona como uma espécie de gaveta de recurso para arrumar o que não cabe nas outras prateleiras (isto não é uma crítica a Helena Figueira, mas antes a toda uma tradição gramatical às vezes um pouco ligeira, digamos assim)...
O que eu defendo é que eis é uma forma verbal – uma forma verbal estranha, porque pertence a um verbo tão defectivo que não tem mais nenhuma forma, mas uma forma verbal ainda assim. Todos os testes empíricos parecem prová-lo: a) eis é núcleo de predicação. É verdade que nem só os verbos podem ser núcleos de predicação, mas os outros núcleos de predicação aparecem sempre em frases com uma cópula ou um verbo locativo. Ora b) eis parece nunca poder coexistir com um verbo, além de que c) eis atribui caso acusativo ao seu argumento, o que só um verbo pode fazer (eis a Rita = ei-la). Tudo isto são provas empíricas de que eis é uma forma verbal.
Talvez convenha explicar, a quem não esteja familiarizado com estas coisas, que núcleo de predicação é a parte mais abastracta do que se diz sobre alguma coisa. Por exemplo, em O gato comeu o carapau, comeu o carapau é o que se diz sobre o gato, a predicação, mas comeu é mais abstracto do que carapau, e é então o seu núcleo. Dito à pressa, é isto. O núcleo de predicação é quase sempre um verbo, mas há casos em que não: Sou professor ou Ele está entre a espada e a parede.
Acho que não preciso de acrescentar mais nada para provar que eis é uma forma verbal. De um verbo muito defectivo, se considerarmos que é a única forma de um verbo que significa “estar aqui”, independentmente de qual seja a sua origem, ou menos defectivo (até nem nada defectivo...) se considerarmos que é de um uso peculiar do verbo haver que se trata. Não preciso de acrescentar mais nada para provar que eis é uma forma verbal, dizia eu, mas posso acrescentar mais alguma coisa a propósito:
Escrever, como eu escrevi, que “o conceito de advérbio é tão vago que funciona como uma espécie de gaveta de recurso para arrumar o que não cabe nas outras” é só outra maneira, mais apropriada (?) para comentário em consultório linguístico, de dizer que “a categoria advérbio é o caixote de lixo da gramática”, como dizia a saudosa Professora Henriqueta Costa Campos, a quem devo, entre centenas de outras coisas, a problematização do conceito de advérbio. O seu a seu dono, portanto.Tal como é usado o conceito em gramáticas e dicionários, um advérbio é, basicamente, qualquer palavra invariável que não seja preposição ou conjunção, tenha ela que função tiver. Agora, para poder classificar-se como verbo, parece indispensável que uma unidade de base se possa flexionar em tempo, modo, etc. Está muito bem, mas, se todos estão de acordo que há muitos verbos a que faltam algumas formas, por que é que custa aceitar que a determinados verbos faltem muitas formas? Ninguém duvida de que buscar seja um verbo, mas, na minha variante do português, actualmente, o verbo buscar só tem de facto a forma do infinitivo e a da forma tu do imperativo, que se usa para cães. Eu sei bem que todas as outras formas existiram e existem ainda noutras variantes do português, mas no português lisboeta (pelo menos nesse dialecto), todas elas desapareceram…
Chega de verbos. Ou seja, não chega, mas demos agora (Esta forma ainda existe? Talvez não seja má ideia defectivizar um bocadinho o verbo dar, que demos é horrível!...) outro tom à conversa – o que se segue são dois excertos de um chat, devidamente corrigidos das muitas gralhas que sempre se infiltram nos chats todos, entre este vosso amigo e um amigo dele. Sobre verbos:
o meu amigo Pedro: eu tinha uma teoria sobre o verbo intervir
eu: intervém lá
o meu amigo Pedro: se a narração se passa no local do acontecimento, pode-se dizer que o sujeito interveio. se a narração se reporta a um acontecimento onde o receptor não está, deve dizer-se que o sujeito da acção interfoi! interveio aqui, interfoi lá
eu: iá, mas isso é o verbo interir
o meu amigo Pedro: interveio é interir?
eu: interfoi é que é o verbo interir
o meu amigo Pedro: sim, mas interir inventaste tu agora
eu: tu é que inventaste
o meu amigo Pedro: ah bom, ainda bem para ti. ainda tens esperança de salvação
eu: mas é bom verbo, vou passar a usar
o meu amigo Pedro: acho que sim, e faz sentido. a mim faz
eu: também se pode fazer com convir
o meu amigo Pedro: confoi… o que melhor lhe confosse. fez o que melhor lhe confoi
eu: desair-se também
o meu amigo Pedro: como queiras
eu: os gajos desaforam-se… mas isso é um desaforo
o meu amigo Pedro: também se podia pensar em lojas encerradas 24 horas por dia. eram as lojas de semveniência:
eu: para cá, porque vem de semvir, mas para lá, como seria?
o meu amigo Pedro: para lá que se lixe, se eu tenho uma loja fechada aqui ao pé da porta porque é que vou procurar outra mais longe?
eu: um verbo muito defectivo é nhemos! como é o infinitivo desse verbo? nhar, tem de ser
o meu amigo Pedro: anhar
eu: não se diz anhemos, diz-se “nhemos lá malabar o bèrredon do paílho”. anhar é mais verbo de anhuca, ou não?
o meu amigo Pedro: por aí
eu: também é bonito, faz lembrar borrego
o meu amigo Pedro: é lindo com batatas
Para que vocês vejam… É o sono que faz isto.
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