Já não me lembro por quê, fui no outro dia parar a um site chamado Sticky comics e a uma página em que o seu autor, um rapaz chamado Christian, lista 4 coisas que os nossos netos nunca compreenderão: relógios não digitais, escrita à mão, cassetes de vídeo e jornais impressos.
Não é discutir o valor de verdade das propostas do tal Christian que me interessa, mas notar apenas que o jogo que ele propõe é, além de fácil e inesgotável, também muito agradável para toda a gente. A minha experiência, pelo menos, diz-me que não há quem, por menos passadista que se diga, não dê consigo de vez em quando a jogar alguma variante desse jogo. Hoje, vejam lá vocês, pus-me a pensar que já não há copos de dois nem de três, nem tintinhos nem branquinhos com mistura, e que a expressão “É do lote ou do especial?” não faz mais sentido para os meus filhos do que para os netos do Christian dos Sticky comics, que é norte-americano…
Como os pensamentos são como as cerejas, lembrei-me (do que eu me vou às vezes lembrar…) de um poema que escrevi em Outubro de 1986, com 27 anos, portanto, e em que fazia já uma lista de tudo o que, da minha infância e adolescência, tinha passado à história. E já era muita coisa nessa altura… O texto não tem interesse literário, mas, quando o reli hoje, achei-o com valor documental suficiente para o pôr aqui. Dediquei o poema, quando o escrevi, ao meu irmão João, e, claro, continua a ser essa a dedicatória principal, mas acrescento-lhe agora, ao torná-lo público, uma dedicatória suplementar: a quem nunca tenha conhecido a Rinchoa, as Mercês, Rio de Mouro e redondezas de outra maneira que não seja como esses antros de desolação que hoje são.
Rinchoa revisitada (Quem me viste e quem me vês…)
ao João, que é meu irmão
‘Inda havia à porta o peixe,
o leite e a carroça do azeiteiro.
Havia ainda a aldeia,
a minha terra pequenina,
quase ainda de patilhas
e coletes
e barretes
e de burro
e de faixa enrolada à cintura,
quase assim ainda saloia,
como a pintara o mestre Leal da Câmara,
a cheirar a eucalipto
e carne frita às Mercês,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Lá p’ra baixo havia o Monte.
‘Inda havia tamareiras
e as grutas e a pedreira,
sobranceira a vacaria
à calçada ainda estreita.
Mais acima, ‘inda o casino,
com cinema e com bilhares
e gabava-lhe os bons ares
o v’raneante burguês,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Havia ainda o mercado,
a praça, que se dizia,
embora com o desacordo
do painel de azulejos
que anunciava, soberbo,
“Centro Comercial da Rinchoa – 1949”,
a leitaria da Adelaide,
Sagres e amendoins,
a mercearia do Nina,
que de tão gordo já mal
cabia atrás do balcão
e que aviava, ‘inda assim,
mais tinto do que feijão
e que era ademais o dono
do bailarico saloio
da noite benta de sábado
ao som do acordeão.
Ainda havia o sapateiro,
pachorrento como as botas de carneira
a que remendava meias solas.
E havia o Mário merceeiro
a escarafunchar, o sem vergonha,
o narigão encarnado
enquanto roubava no peso do flamengo
mesmo no nariz do freguês,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Ainda havia
o Manel do jardineiro
e o ti’ Chico pedreiro
e outro Chico, o popó,
cavalo malandro,
filho da escola,
que tinha ensinado o carro
a subir sozinho a Avenida dos Carvalhos
até ao parque infantil
(ainda havia…)
e depois a meter p’la esquerda,
pela Avenida dos Plátanos,
e por fim, chegado a casa,
a pegar no gajo ao colo
e pespegá-lo na cama
à espera que aquilo lhe passasse,
o camano da bubadeira.
E depois havia a malta,
bicicletas pasteleiras,
o futebol de praceta,
mais as festas de garagem,
a nocturna guitarrada,
o namorico, a chinchada,
e claro, como soía,
a guedelha e os porquês,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Um dia, de manhãzinha,
começaram a deitar árvores abaixo
e iam crescendo prédios
onde elas iam caindo.
Foi assim em toda a linha.
Lá por trás de Fitares,
do outro lado do rio
e da linha do Oeste,
fizeram a Icesa à prova de sismo.
Chama-se hoje Mira-Sintra.
Mais p’ra baixo,
Massamá passado,
fizeram a Icosal.
Hoje é Queluz Ocidental.
A minha terra pequenina
viu arrasar vacaria e tamareiras
e passou do pé p’rà mão
a chamar-se Urbanil.
Chegavam agora cada vez mais comboios
ao pequeno apeadeiro
e traziam de cada vez
mais e mais gente.
O casino de veraneio
foi fábrica de sapatos
e depois tipografia.
Morreu o Mário da mercearia,
fechou a Adelaide a leitaria,
a praça desapareceu,
o Nina gordo morreu.
E a aldeia que fora
a minha aldeia era agora
história de era uma vez,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Ruíram casas burguesas,
quintal ajardinado, pérgula,
caruma acumulada sobre a telha,
a fachada enfeitada de hera
e de madeira vermelha,
não deram mais sinal de vida
as madamas que houvera.
Passou a minha terra pequenina
a dormir de luz acesa.
O peixe que houvera à porta
quase apodrece de tédio
na arca do supermercado.
O leite da bilha de lata
deu em homogeneizado
e ultrapasteurizado.
A terra, que era sem lei,
viu chegar a chotaria
com os nocturnos pela trela.
E o Lopes, que morava
num anexo de vivenda,
ao pé do pinhal do Escoto,
mora agora num andar,
primeiro, lote bê três,
ah, Rinchoa pequenina,
quem te viste
e quem te vês…
Abençoado o que já não és,
minha terra pequenina
e maldito três mil vezes
na quinta casa do Inferno
quem te foi tirando
aquela graça que tinhas
de seres a minha aldeia,
danado seja aos mais horríveis suplícios
quem te foi fazendo feia,
tu que eras linda, menina,
maldito quem te vestiu
de alumínio e de betão,
quem te arrancou os pinhais
e fez secarem-te as fontes,
maldito seja e danado
à eterna perdição!
E porque não, já agora,
‘maldiçoado eu também,
a armar em saudosista,
ao bom estilo português?
Ah, Rinchoa pequenina,
quem me viste
e quem me vês…
copo bem mais que meio cheio
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Em 2023, festejei o meu aniversário na clandestinidade porque estava a
lidar mal com aquele 60. Enfim, clandestinidade relativa: avisei os amigos
de Berli...
Há 18 horas