Acho que a maior parte das pessoas concordará comigo se eu afirmar que, em português europeu moderno, preto é o termo com uma conotação racista para referir as pessoas de tipo físico africano e negro o termo neutro.
A questão é, obviamente, complexa, e nada impede que negro figure em enunciados racistas e que preto seja usado em enunciados não racistas. A escolha das palavras não resume só por si uma atitude mental e comportamental como o racismo. Mas pode integrá-la… e integra-a quase sempre. E é porque a integra quase sempre que é possível afirmar com um relativo à-vontade o que eu afirmo no primeiro parágrafo. Todos sabemos que as pessoas de tipo físico africano não são, actualmente, referidas como pretos em documentos legais, nem em textos escolares, nem em discursos oficiais – em enunciados, em suma, que se assumam como não-racistas; e ninguém viu nunca inscrições racistas de skinheads ou quejandos em que se apele à “morte aos negros”…
Até aqui, tudo muito bem, mas por que é que assim é? Qual é a diferença real de significado entre as palavras negro e preto que possa explicar essas particularidades do seu uso? Há já muitos anos, fiz uma mini-investigação para tentar responder a estas perguntas. E se havia de ficar a apodrecer o texto que dela resultou numa gaveta digital do meu computador, sem ninguém que o lesse, por que não limpá-lo um bocadinho para o tornar mais digerível e apresentá-lo aqui na Travessa?
Para começar, talvez seja boa ideia dizer de onde vêm as palavras. Ambos os termos são de origem latina, negro de nigru- e preto de pressus, palavras que significam ambas, originalmente, “de tez escura”. Tanto negro como preto surgem muito cedo na língua: ambos os adjectivos estão atestados já no séc. XIII, e os nomes no séc. XV. Curiosamente, o termo mais comum do latim clássico para dizer a cor negra, que é ater, praticamente desapareceu. A palavra portuguesa atro, que dele deriva, é extremamente rara. Lembro-me de que foi num poema de Alexandre O’Neill, “O atro abismo”, que a vi pela primeira vez e tive de ir procurá-la no dicionário: “Atro?” (O meu corrector ortográfico, por exemplo, não a conhece…)
Feita a apresentação das palavras, vejamos como se comportam os adjectivos preto e negro no português europeu actual, que é só o que eu me proponho analisar. Começo pelo uso como adjectivo, porque é desse que deriva o outro, e não ao invés. A primeira constatação que fazemos, se deixarmos de lado expressões recentemente importadas do português do Brasil como “A coisa/a situação está preta”, é que preto não pode ocorrer com nomes abstractos, ao contrário de negro: não se diz magia preta, nem humor preto, nem literatura preta e fantástica… Nada impede, no entanto, que negro ocorra com nomes concretos: pode perfeitamente dizer-se cavalo negro, olhos negros ou roupa negra. Aparentemente, estamos perante aquilo a que alguns linguistas chamam uma oposição entre uma forma marcada, preto, e uma forma não marcada, negro, que é como quem diz que todo o preto é negro, mas nem todo o negro é preto.
Note-se, no entanto, que, no actual português europeu oral, a tendência é encontrarem-se os dois termos em (mais um palavrão linguístico…) distribuição complementar, isto é, ocorrendo um no contexto em que o outro não ocorre. De facto, negro tem uma muito forte tendência a aparecer apenas com nomes abstractos, sendo deixado para preto o espaço do concreto. Não é sempre, sempre assim, mas a tendência acentua-se cada vez mais. Tinha a sorte de ter, na altura em que fiz esta pequena pesquisa, uma colega de trabalho, Anabela Carvalho, que tinha feito uma tese de mestrado precisamente sobre nomes de cores. Além de ter feito comentários muitos pertinentes à primeira versão do meu texto, facilitou-me dados fundamentais sobre as palavras negro e preto, um dos quais confirma claramente o que acabo de afirmar: num corpus de 700 000 palavras que Anabela Carvalho recolheu em artigos sobre moda (portanto, no domínio do concreto, já que é exclusivamente de cores de roupa que se trata), negro ocorre 140 vezes e preto 1237.
Para reforçar esta ideia, posso fazer outra constatação: só negro parece poder aparecer antes do nome. Todos conhecemos uma canção que fala de uma negra madeixa ao vento, mas é-nos difícil imaginar alguém escrever um verso sobre uma preta madeixa ao vento; não nos choca que traduzam por Negros hábitos o título do filme Entre Tinieblas de Almodóvar, mas acharíamos muito estranho se o tradutor lhe tivesse chamado Pretos hábitos, ou não? Não me quero adiantar muito na questão, que dá pano para mangas, mas pode dizer-se que a anteposição do adjectivo, tradicionalmente considerada “uso afectivo” ou “poético” e frequente em textos literários, sobretudo líricos, é uma “não qualificação”. Para explicar o que quero dizer com isto, um exemplo simples: é claro que uma antiga capela não é “uma capela que é antiga”; aliás, nem sequer é uma capela... Dito doutra maneira, o adjectivo não vem acrescentar nada ao nome, mas apenas formar com ele um bloco que é um novo conceito. É provavelmente por essa razão que os adjectivos passíveis de serem usados em contextos abstractos se podem antepor muito mais facilmente ao nome (fazendo mais do que qualificá-los, mas não me adianto mais nessa discussão…): Está bem uma mesa comprida, mas uma comprida mesa é muito esquisito. Já com longo aceitamos melhor tanto cabelos longos como longos cabelos, mas é precisamente porque longo se usa bem com coisas abstractas como em longa agonia, por exemplo. No domínio da propriedade cor, que é uma propriedade apenas concreta, parece-nos óbvio que só se pode dizer um livro vermelho / azul / verde e nunca, nem para fazer estilo, um vermelho / azul / verde / livro.
E onde eu quero chegar com isto tudo é que preto se porta essencialmente como vermelho, azul, verde, etc.: é uma cor, pronto, ponto; e negro porta-se antes como fulvo, rubro, alvo, etc.: não é apenas uma cor enquanto propriedade concreta da matéria.
A reflexão é só esta. É só esta e não tenho a certeza de que ajude a perceber o uso de negro e preto como nomes. Não tenho nenhuma certeza, mas tenho uma possibilidade. É uma possibilidade que peca provavelmente por demasiado metafísica, mas, ainda assim, deixo-vo-la aqui, para me dizerem o que pensam: não será precisamente porque refere a propriedade objectiva cor que preto é usado como palavra racista? Por outras palavras, não é isso precisamente o próprio do racismo enquanto ideologia, fazer de puros indicadores físicos, como a pigmentação da pele – a cor –, pretensas marcas de inferioridade?
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
3 comentários:
Boas reflexões sobre a relação entre preto/negro.
Aqui no Brasil, pessoas que teimam em acreditar que não existe racismo costumam acreditar também que preto e negro são iguais, que o uso de uma e não de outra não implica na manutenção de um discurso discriminatório.
Toquei nesse assunto num texto recente do meu blog.
Abraços.
Caro Adriano Fernandes,
Desculpe o atraso na resposta, mas tenho estado de férias e o blogue também. Li o texto no seu blogue e concordo completamente com o que diz. Infelizmente, a ideia de que se pode - ou deve... - ser politicamente incorrecto, incluindo ignorar princípios básicos de respeito pelos outros, para "não ser chato", para ser "diferente", é uma imoralidade em voga.
Um abraço
Há vários estudos sobre a história e os usos e origem das terminologias das cores feitos pelo académico francês, historiador de arte, Michel Pastoreau. Tem precisamente uma obra que já existe traduzida em português. Não fala propriamente sobre o carácter antropológico da cor mas vale a pena ler pelo menos alguns capítulos: http://www.fnac.pt/Preto-Historia-de-Uma-Cor-Michel-Pastoureau/a809432
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