11/12/09

África minha e outras questões morais

África é, ao que dizem, como a Alcobaça da letra de Silva Tavares – quem por lá passa, não passa sem lá voltar, porque por mais que tente e que faça, é lembrança que não passa, etc. É claro, África é uma palavra demasiado grande, tão grande como todas as abusivas generalizações que se costumam fazer em relação a ela. Mas é um facto que há, pelo menos aqui nesta África que eu conheço, muita gente de fora que adopta esta terra como sendo sua e, muito embora queixando-se sempre dela, nunca a quer abandonar para voltar ao que deveria ser a sua “verdadeira terra”; como é um facto também que há muito quem, tendo aqui vivido algum tempo, queira voltar à África que, por qualquer razão, deixou – uns queixam-se apenas e nunca voltam, outros vão além da resmunguice e voltam mesmo.

E uma pessoa interroga-se: de que é feito então esse charme, se a vida aqui é, em tantos aspectos, mais insegura e mais difícil do que no conforto do chamado mundo moderno? Em 1998, quando estive em Moçambique a primeira vez, esbocei uma resposta a esta pergunta nas cartas colectivas (ainda em papel, nessa altura) que enviava à família e amigos. Alvitrava eu que a explicação era a possibilidade de arranjar amantes, esposas e esposos incluídos, que noutro lado nunca se arranjariam: “Basicamente, uma pessoa rica tem quem quiser – ou quase. E isso é uma coisa que cativa muito muita gente. Há quem diga que o fascínio de África está na imensa liberdade e no espaço imenso, na natureza ainda por desbravar, no odor virgem da terra, coisas assim… Perdoem-me o tom quiçá um pouco brejeiro, mas essas poetices, a mim, não me convence: o que os faz ficar em África, ou querer voltar, são outros odores que não o da terra, odores que têm, aliás, muito pouco a ver com virgindade…”

Mas é, obviamente, uma visão muito redutora da questão. O poder sexual é apenas uma parte do poder tout court e penso agora que é por aí, pelo poder, que se deve ir. Evidentemente, não é uma explicação que exclua outras (que sabe bem não se precisar nunca de sobretudos, ah pois sabe!) e não se aplica seguramente a todos os casos, mas parece-me, no geral, uma boa explicação para haver tanto quem se apaixone por esta terra. A “liberdade” e o “espaço” que atraem “em África” são metáforas desse poder, porque é isso que dá o poder: liberdade e espaço, em variadíssimas acepções destas duas palavras.

Queria, a propósito, especular um bocadinho sobre poder, precisamente. Nem sempre é fácil apercebermo-nos da importância que a conquista e manutenção do poder têm nas nossas preferências e nas escolhas que vamos fazendo ao longo da vida. Há várias demonstrações muito convincentes de uma verdade simples, que se aplica tanto aos seres humanos como a outros animais com hierarquias sociais: a subordinação tem grandes implicações ao nível da alegria de viver e até ao nível da saúde; quanto mais baixo se está numa hierarquia social, quanto mais indivíduos houver a quem dever obediência, pior vivemos. Isto não implica, é claro, que, a maneira de evitar o stress da subordinação seja deter o poder (a não ser que não admitamos a possibilidade de igualitarismo) – para não sofrer stress da subordinação basta viver sem hierarquia e não forçosamente fazer parte do topo da hierarquia, e é o que defendem precisamente, os defensores da igualdade como mecanismo de bem-estar social. Não conheço demonstrações de que resulte directamente uma maior qualidade de vida do facto de se ocupar um posto mais alto na hierarquia, mas parece provável que haja uma tendência natural de procura de poder e que a sua satisfação seja uma fonte de bem-estar. Não me parece que haja nesta afirmação nada de muito polémico, até porque é velha como o mundo a ideia (a constatação?) de que o poder seduz; e até porque, dirão muitos, o poder traz com ele vantagens palpáveis e é por isso que ele é, naturalmente, desejável!

Não sei. Ao contrário do que possa parecer de imediato, talvez seja a vertente mais abstracta do poder a mais sedutora. É certo que ajuda muito na vida prática ter, por exemplo, quem faça por nós e para nós o trabalho que, não tendo esse poder, teríamos de ser nós a fazer; e é objectivamente desejável, em termos de transmissão dos nossos genes (ou de satisfação da pulsão sexual, vejam isso como quiserem) termos o poder de escolher muitos parceiros sexuais e de boa qualidade. Mas talvez o mais sedutor de ter pessoas que trabalhem para nós não seja o trabalho que elas fazem, e sim o facto de as ter. Ou melhor, de as poder ter. O mesmo com os parceiros sexuais. Mais apetecível do que tê-los de facto, talvez seja saber que se os pode ter. Poder.

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