16/01/12

Grassa a graça no paço, quando lá passo

Encontrei no YouTube um vídeo muito engraçado. É um excerto do filme de Tiago Pereira 11 burros caem no estômago vazio, de 2006. O vídeo tem interesse de muitos pontos de vista, mas, claro, para uma pessoa da área das línguas como eu, tem também interesse linguístico. Mostra-nos, por exemplo, a pronúncia de s, ç e z, ch e x no português antigo!...


Muitos reagirão imediatamente: «Mas não é português que esta gente fala!» Muito bem, assentemos que não. Não sei nada de mirandês e não consigo perceber se é mesmo mirandês que falam, ou uma mescla de mirandês e português, ou se é assim que se fala português na região, devido às interferências do mirandês. Para o que me interessa, porém, isso não importa: ouçam como estas pessoas pronunciam s, ç e z, ch e x no discurso que aqui lhes ouvimos e ficam a saber como se pronunciavam em português antigo.

Se ouvirem com a atenção necessária, verão que c e ç (pertenço, centeio, desgraçado) são pronunciados como em Lisboa (predorsodentais, chama-se em linguagem técnica) e que o s é pronunciado entre s e ch, como na Beira (ápico-alveolar). Reparem também que o z (por exemplo em fazer ou catorze), é também pronunciado como em Lisboa, ao passo que o s entre vogais (por exemplo em casa, marquesa ou ligando uma palavra à palavra seguinte, quando esta começa por vogal), tem uma pronúncia entre um z e um j do português standard moderno, como no sotaque beirão. Além disso, o x, que se pronuncia como em português standard (por exemplo, em baixo), é diferente do ch, que se pronuncia [tch] (por exemplo em chorar).

Não se sabe ao certo quando é que as diferenças que se preservam neste falar transmontano desapareceram no resto do país, mas há quem defenda que tinha começado a haver confusão entre estes sons já no século XIII e a maior parte dos estudiosos aceita que no século XVI s e c/ç, z e s intervocálico se pronunciavam já indistintamente em quase todo o país: na Beira, c/ç e z passaram a pronunciar-se como s; nos outros lugares, foi ao contrário, s passou a pronunciar-se como o ç/c e z. Como devem calcular, houve muito a gente a criticar a pronúncia das pessoas que já não distinguiam s de c nem x de ch, até que este empobrecimento se tornou norma e o que era antes pronúncia normal passou a ser exclusiva de um sotaque remoto lá atrás dos montes. É sempre assim.

07/01/12

Acordo ortográfico: quase sempre mais emoção do que observação

Encontrei no blogue Linguagista, de Helder Guégués, um excerto de um texto de José Soares sobre a nova ortografia*:
Neste Acordo Ortográfico, dito de 1990, aparecem normas e directivas que, por uma certa racionalidade conservadora, contesto. A razia que faz às letras que se não dizem ou lêem e o concomitante apagamento de alguns diacríticos produzem em mim um certo desconforto. É o caso de vocábulos até aqui terminados em -ecto, como directo, recto, tecto, etc., que agora se escrevem direto, reto, teto, etc. Ora, não conhecendo eu as novas regras ortográficas (e mesmo conhecendo-as), posso muito bem (ou muito mal) ler e dizer dirêto, rêto, têto, etc., que é assim que, predominantemente, se lêem ou dizem as palavras em -eto, como folheto, amuleto, esqueleto, etc. É que não foi revogado, nem por fundamentação pertinente da Academia nem muito menos pelo costume, a regra implícita tradicional e etimologicamente correcta do valor fonético daquela consoante c, que faz(ia) abrir a vogal precedente. Mas penso que são incontáveis as razões de reparo que o Acordo oferece. Ou será que passa a ser indiferente qualquer modo de acentuar a tónica como muito bem nos apetecer?
Surpreende-me que, havendo outras críticas que se podem fazer ao acordo, se critique sempre e apenas o desaparecimento das chamadas consoantes mudas e dos sinais que marcam aberturas de vogais. Surpreende-me ainda mais que se argumente sempre que o acordo torna mais ilógica a relação entre a escrita e a fonética, como se existisse uma relação lógica desse tipo na ortografia anterior. E surpreende-me que se argumente com base em impressões apenas. A verdade é que este tipo de argumentos é, quase sempre, tão pouco assente em reflexão cuidada e em observáveis que uma pessoa que, como eu, preze o rigor na discussão das coisas da língua tem de reagir. Senão, vejamos:

Diz José Soares que “é [com ê] que, predominantemente, se lêem ou dizem as palavras em eto, como folheto, amuleto, esqueleto, etc.”. Bom, é verdade que talvez haja uma ínfima predominância, mas tão ínfima que é falacioso apresentá-la como ele a apresenta. É que, dito assim, quem não tenha o cuidado de verificar a afirmação de José Soares (como ele próprio, pelos vistos, não teve) ainda acredita que é significativa essa predominância. E não é: fiz uma lista (forçosamente incompleta) de 133 palavras em -eto, e 65 têm o som [é] – o [ê] ganha por 3**!…

É impossível fazer uma lista definitiva de vocábulos em -eto, e, conforme a lista que se faça, a percentagem de palavras com [é] variará ligeiramente. Por outro lado, muitos falantes do português hesitam na pronúncia de algumas palavras em -eto, sobretudo as muito raras, e há, como sempre, variações socioletais e dialetais nas pronúncia desta palavras. O que é prudente afirmar, porém, não é o que José Soares afirma, mas sim que há sensivelmente o mesmo número de palavras terminadas em -eto com [ê] e com [é]. Além disso, alguns dicionários consideram [é] a pronúncia não marcada, porque assinalam as formas com [ê] e eu acho estranho que isto, por muito que nos pareça decisão discutível (a mim, parece-me), não mereça reparo de quem escreve sobre o tema…

Mas voltemos à suposta predominância de -[êto] relativamente a -[éto]. Na lista que fiz, o que faz pender ligeiramente a balança para o lado do [ê] são os nomes com o sufixo eto (28 na minha lista): brometo, cloreto, dueto, terceto, etc. Se analisarmos por categoria, vemos que os adjetivos têm maioritariamente [é] (as exceções são obsoleto, palheto e preto, e os raríssimos peto e careto) e, nas formas verbais, há também uma claríssima maioria de [é]. Não fossem os verbos da família de meter (prometer, submeter, remeter, etc.) e seriam uma esmagadora maioria.

Quanto a teto, é curioso, existem já duas formas, teto, a língua, e teto, forma rara, variante de teta, com pronúncias diferentes do e, pelo que tecto sem c apenas se torna igual a uma delas…

O que é estranho neste tipo de críticas*** é que há nelas implícita uma proposta de outro acordo ortográfico e surpreende-me que ninguém proponha explicitamente o que se deduz forçosamente do texto de José Soares: se a forma natural de ler a sequência -eto em final de palavra é [êto], e se directo não deve passar a ser direto, porque assim se passa a ler [dirêto], então completo, concreto, quieto, decreto e neto (e mais 60 palavras, na minha lista forçosamente incompleta) devem passar a escrever-se complecto, concrecto, quiecto, decrecto e necto, para se lerem como já se leem. Ou complepto, concrepto, quiepto, decrepto e nepto, não sei… E, de facto, uma destas forma justifica-se etimologicamente: nepto. É assim que, muito provavelmente, alguns acham que se deveria escrever, mesmo que nunca o digam – pelo menos, aqueles que acham que óptimo não deve perder o p etimológico…
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*Situações incómodas em português”, in Público, 6.01.2012). Muito haveria a dizer sobre outras partes do texto de José Soares, mas limito-me aqui a comentar esta passagem.

** Eis a lista de palavras, feita a partir de uma lista obtida no site Poeta Vadio, Dicionário de Rimas: abeto, aboleto, acarreto, acolcheto, acometo, adieto, afreto, alfabeto, alfineto, amuleto, analfabeto, aquieto, arboreto, arremeto, arreto (n.), arreto (v.), asseto, atapeto, avioleto, beto, bisneto, breveto, brometo, calafeto, calceto, carapeto, carboneto, carbureto, careto (v.), careto (n.), carreto, cateto, cianeto, cloreto, cometo, completo (a.), completo (v.), comprometo, concreto, coreto, correto, decreto (n.), decreto (v.), derreto, descloreto, descomprometo, desinquieto, desinquieto, despoleto, discreto, dueto, embarreto, enceto, engaveto, espeto (v.), espeto (n.), espoleto, esqueleto, etiqueto, excreto (a.), excreto (v.), excreto (n.), faceto (n.), faceto (v.), feto, fileto, fluoreto, folheto, fosforeto, freto, garaveto, gaveto, gineto, graveto, greto, gueto, halogeneto, hidrocarboneto, incompleto, indiscreto, inquieto (a.), inquieto (v.), interpreto, intrometo, iodeto, irrequieto, jogueto, lanceto, largueto, libreto, maceto (v.), maceto (n.), magneto, marreto, meto, neto, neutreto, obsoleto, octeto, palheto (n.), palheto (a.), panfleto, paracleto, peto (n.), peto (a.), pirueto, poemeto, preto, prometo, quarteto, quieto, quinteto, reenceto, reinterpreto, remeto, repleto, retroceto, secreto, semianalfabeto, septeto, sexteto, soneto, submeto, sulfureto, telureto, terceto, teto (n. 1), teto (n. 2), tetraneto, vegeto, veto (v.), veto (n.), xereto.

*** Neste tipo de críticas, sublinho, isto é, nas críticas que assentam no pretenso desaparecimento de uma lógica fonética da ortografia pré-acordo. O que digo aqui não se aplica a uma crítica ao desaparecimento das consoantes mudas que se baseie na ideia de que só se deve legislar se houver necessidade de legislação e que, portanto, este acordo não deve existir, visto que não há necessidade de alterar a ortografia.

Cego pela luz que tudo ilumina

E eis que me decido a concretizar uma ideia que tenho há algum tempo anotada num ficheiro chamado Travessa do Fala-Só 6, um bloco de notas digital em permanente atualização: Apresento-vos aqui em contraste dois clássicos da canção popular americana, para ver se ganham sentidos novos pela justaposição. Ou para ver qual deles tem mais capacidade de ganhar sentidos novos consoante o contexto. Ou para se ver que há textos que ganham mais facilmente sentidos novos, enquanto outros tendem a exigir-nos leituras literais... E enriqueço a apresentação com uma passagem de Heterodoxia I de Eduardo Lourenço (Coimbra: Coimbra Editora, 1949), que lhe assenta que nem luva e que encontrei num dos meus blogues favoritos:
Os que se recusam à escolha, os eternos descobridores dum terceiro caminho que não existe em parte alguma (segundo as ortodoxias), os heterodoxos absolutos, devem ser destruídos quando o combate chegar. Assim pensava já o velho Sólon, a sabedoria laica de Atenas. Devem ser destruídos agora mesmo, que o combate, a luta pela verdade, está travada desde sempre. Não há lugar para os heterodoxos. Eles são incomensuráveis com Deus, com a Pátria, com o grupo, com a família, com o amor, com eles próprios. Abandonemo-los então à sua divisão tão amada e que pereçam, pois são o reino dividido em si mesmo de que fala o Evangelho. Inimigos do género humano.
Assim pensava Juliano dos cristãos e S. Domingos dos albigenses. Assim pensava Marx dos burgueses e os burgueses de Marx. Assim pensa Churchill dos comunistas e os comunistas de Churchill. Assim pensa todo o homem que possui certezas absolutas de outro homem que as nega (…).
A heterodoxia é a humildade do espírito, o respeito simples em face da divindade inesgotável do verdadeiro. Resistamos à ilusão de supor que tudo pode ser inundado de luz. Deixaríamos de ver.
Hank Williams, “I saw the light”, 1948
“Acabou-se a escuridão, a noite chegou ao fim. Agora sou tão feliz, sem a dor dentro de mim.”



Bruce Springsteen, “Blinded by the light”, 1973
“No sinal, tens de virar; depois, em frente, rapaz, até a noite chegar: é sozinho que tu estás"