Há dias, uma amiga minha partilhou, no Facebook, uma fotografia – bonita, por sinal – de uma mercearia antiga, com os antigos armários de madeira, as antigas caixas para cereais e legumes secos, e as antigas bilhas de azeite, em metal; e, a acompanhar a foto, o também já muito antigo louvor bucolista da qualidade de vida e da autossuficiência dos tempos idos, destruídas pela terrível modernidade…
Quem não se lembra da mercearia da sua juventude? Eu cá, lembro-me perfeitamente da mercearia do Sr. Mário. Lembro-me bem de que escarafunchava, o sem vergonha, o narigão vermelho enquanto roubava no peso do flamengo. Do feijão cheio de bicho, que tinha de se escolher, também me lembro perfeitamente. E do toucinho sempre um bocadinho rançoso, ao gosto da altura, que remédio..., naquele alguidar de barro, dias, semanas a fio. Lembro-me das compras embrulhadas em papel de jornal, sem pagar mais pelas notícias – para quem soubesse ler... E lembro-me do carrascão do Bombarral e do azeite cheio de acidez, ambos diretamente do produtor… Mas vendiam-se bem, mais o tinto que o azeite, porque a mercearia também era tasca. E quando o Sr. Mário estava mal disposto, o melhor era nem se entrar lá, para não se levar roda do que calhasse. Mas isso era na mercearia do Sr. Mário, porque na outra que havia ao pé de minha casa, a do Sr. Manel... era ainda um bocadinho pior.
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As mercearias antigas são o menos. Nem guardo rancor nenhum ao Sr. Mário, por muito trafulha e pouco asseado que fosse, e nem sequer à falta de controlo de qualidade da comida da altura. A questão é que o louvor da mercearia antiga é uma das inúmeras formas que reveste a ideologia do “antigamente é que era bom”. E combater a idealização do passado é uma das minhas ocupações favoritas – uma das minhas lutas, se posso dizer assim. O passado não foi tão bom como o pintam, digo eu. Digo e redigo, e continua a haver muito quem não acredite em mim…
Defendia uma vez o meu amigo Nuno, num comentário que aqui deixou, que “as nossas memórias do que foi são muito seletivas”. “Eu tenho tendência para lembrar-me das coisas boas”, dizia ele. Ele e muita gente. Toda a gente até, se calhar. Mas é bom lembrarmo-nos também do resto, para perspetivarmos melhor de onde vimos e para onde queremos ir; para repensarmos se é mesmo o passado que nos há de servir de mira quando apontamos ao futuro.
A mercearia do Sr. Mário: imagem artificialmente dourada de um passado não muito distante [Foto de Pedro Malaquias] |
A verdade é que Portugal, que agora tem uma esperança de vida acima da média da OCDE, ganhou 15,6 anos de média de vida desde 1960 – é o 9º país da OCDE que mais anos de vida ganhou desde a altura em que eu era pequenino fazia compras na mercearia do Sr. Mário. A verdade é também que, quando eu era pequeno e fazia compras na mercearia do Sr. Mário, havia em Portugal 30% de analfabetos, um número muito pouco europeu, e agora há 5%, o que, sendo ainda alto, é um número bem mais apresentável. Podia dar-vos dezenas de indicadores de quanto a vida melhorou em Portugal desde o tempo da mercearia antiga, mas vocês também os podem encontrar com facilidade. É que é mesmo fácil verificar que o passado não era como a sua fácil idealização nos quer fazer crer…
Agora, talvez o passado tivesse mesmo alguns aspetos louváveis, quem sabe?, mas quais seriam? E haverá quem queira trocar o que se ganhou em tempo de vida e de lazer, saúde, conforto, liberdade e saber por… sei lá… sardinha de barrica, bolacha americana e fava-rica?