A quase totalidade das fotografias que conservo são fotografias que, de uma forma ou de outra, documentam a minha vida. Penso que sucederá o mesmo convosco. Mas tenho também, algures no meio das minhas fotos, várias outras que não têm nada a ver com a minha vida e que guardo antes por serem mistérios, focos de sedução e de magia. Algumas, nem sei de onde vêm e o fascínio que têm é precisamente serem misteriosas apenas, pedaços impressos de vidas que desconheço completamente. De todas elas, a que aqui nos interessa é uma que me veio numa bíblia em francês comprada em segunda mão: vê-se três senhoras de meia idade, vestidas de uma forma de tal maneira clássica que seria impossível identificar a época em que a fotografia foi tirada, se não estivesse com elas um jovem alto, com um cabelo comprido, uns bigodes desenhados até ao queixo, umas calças à boca de sino e uns sapatos de tacão alto que só existiram nos anos setenta do século vinte. A fotografia tem escrito atrás, em letra redonda de portuguesa, «Senhor, ensina-me a ser instrumento da tua Graça», e a data, «16.VII.1987», que não só está escrita de uma forma pouco normal em Portugal como também é, com toda a certeza, muito posterior à fotografia. O livro pertenceu a uma tal Maria da G. Galhardo, moradora na Travessa da Senhora da Glória, 26, 1.º Esq. Nunca encontrei desenvolvimento para o G. abreviado que não fosse Graça como a do Senhor, de que ela queria ser instrumento, ou Glória, como da Senhora (curiosamente, a Travessa da Senhora da Glória, não sei se sabem, é na Graça…).Até agora, o parágrafo anterior servia apenas de introdução a um conto meu chamado “Valdemar, o marinheiro”. Agora, passa a servir de introdução também a este texto, que é sobre estranhos pedaços de vida que se encontram em livros em segunda mão.
A Bíblia de que falo, comprei-a na Feira da Ladra e por uma ninharia, se bem me recordo, mas não me lembro já por quanto. É uma tradução ecuménica francesa, impressa no Canadá, e tem uma grande quantidade de notas sobre dificuldades de tradução e questões históricas e culturais, além de remissões constantes de umas para outras partes que tratam temas ou acontecimentos relacionados. É do melhor que vi até hoje para quem, como eu, encara a Bíblia como um conjunto de documentos históricos e obras literárias, e não como uma recolha de revelações divinas.
A história da fotografia encontrada na Bíblia não é completamente fictícia; mas, como seria de esperar, também não é exatamente como a descrevo no conto. Não são três mulheres e um homem que se veem na fotografia, mas sim duas mulheres e dois homens. Além disso, a frase “Senhor, ensina-me a ser instrumento da tua Graça” não está escrita nas costas da fotografia, mas sim na primeira página da Bíblia e a data que tem é 19.VII.80. Numa das guardas, estão escritas com a mesma letra um nome, uma morada e outra data. Nem o nome nem a morada são os que refiro no conto. A morada é da Estrada da Luz. Luz não é sem relação com Graça e com Glória, claro, mas a Estrada da Luz fica a uns quantos quilómetros da Graça. A outra data é 24.III.1980. Estranho, não é?, duas datas diferentes a duas páginas uma da outra?
A foto que vinha dentro da Biblia é a que deixo aqui a seguir e tem a data 15.05.86. Achei que a fotografia era fundamental neste texto, mas cortei as caras, porque não tenho autorização das pessoas fotografadas para a publicar – nem tenho, bem entendido, maneira de a pedir – e porque ela se enquadra assim melhor no texto, que é sem grande cabeça, convenhamos.
Uma coisa assim faz-nos sonhar. É como encontrar uma mensagem numa garrafa trazida pelo mar em que não se identifique remetente nem proveniência. Também é como ficar, sem querer, na posse de uma pedaço de vida alheia a que, em princípio, não temos direito. A reação mais racional é, provavelmente, deitar fora a foto e não pensar mais no assunto. No extremo oposto está a minha: interrogar-se sobre quem são as pessoas da fotografia e o que estão a fazer, imaginar como se poderia contactá-las, dizer-lhes que temos a foto, que veio numa Bíblia, que estamos, claro, dispostos a devolvê-la, se a quiserem, quase que pedir desculpa do nosso, como dizer?, voyeurismo… Procurar o remetente desconhecido da mensagem na garrafa, enfim, para lhe contar onde ela foi parar e às mãos de quem. Ou escrever um texto de blogue sobre o assunto, também pode ser. Estranhar é o meu divertimento preferido.
No sábado comprei, numa loja de coisas em segunda-mão, uma versão de Moby Dick para jovens. Quero propô-la à minha filha mais nova, que gosta de ler. Talvez ela passe também, não sei, pelo deslumbramento que Moby Dick me causou – primeiro, no fim da infância, quando conheci a história e as personagens, numa versão destas simplificadas; e, sete ou oito anos mais tarde, quando li enfim o romance em versão integral. Mas isto é um excurso. O que interessa aqui é que o livro trazia lá dentro uma fotografia e uma ficha de enfermeira.
Diz nas costas da fotografia, em dinamarquês: “A primeira coisa que se nota são duas plantas chamadas plantas de cânhamo que enchem o cenário”. A letra e os erros ortográficos parecem de adolescente, mas, claro, é impossível saber. Também é impossível saber se a rapariga que se vê na fotografia é a mesma a que diz respeito a ficha cor-de-rosa que vinha mais adiante. É uma ficha da enfermeira que visita os bebés ao domicílio e diz respeito aos primeiros quatro meses de vida de uma menina. Vê-se que nasceu em 1963 e que a mãe residia nessa altura em Copenhaga, onde fazia um estágio numa livraria. O nome da mãe e da bebé e o seu apelido são demasiado corriqueiros para que valha a pena, sequer, fazer uma pesquisa em Google.
As coisas que os livros em segunda-mão trazem lá dentro e o estranhamento que elas nos causam… Estranhar, não sei se já vo-lo disse, é o meu divertimento preferido.
2 comentários:
Grande tendência para divagar! Como referiu gosto por textos religiosos e se interessa pela tradução talvez goste deste meu outro post: http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2008/04/adeso-da-turquia-ao-alfabeto-latino.html
É verdade, jj. amarante. Há alturas em que me apetece escrever coisas sem grande conteúdo, pelo prazer de provocar estranheza ("O quê, onde quer isto chegar?") nem que só a mim próprio. Ainda bem que isto não me dá muitas vezes.
Obrigado pelo seu texto. É interessante, como sempre. Lembro-me de alguns muçulmanos em Moçambique se queixarem de ter de aprender de cor partes do Corão em árabe, uma língua que desconheciam completamente. Agora, se é já difícil introduzir algumas pequenas alterações ortográficas, porque as pessoas não gostam mesmo de mudar de maneira de escrever, imagine o que será mudar de alfabeto. Nem quero pensar nisso...
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