O enredo de Le Rayon U, de Edgar Pierre Jacobs, parece-nos hoje algo disparatado, as personagens falhas de densidade e o desenho peca às vezes por banalidade, perspetivas e enquadramentos imaturos, e falta de movimento. Evidentemente, não se pode esperar de uma banda desenhada da primeira metade do século XX o que se espera de outras narrativas, mas parece-me que se pode dizer que Le Rayon U já na altura não era nenhuma obra-prima de guião nem de grafismo. Ainda assim, penso que há meia dúzia de coisas que vale a pena dizer sobre a obra (ou este texto não existiria, claro está…), como documento de um contexto histórico, como etapa na obra de E. P. Jacobs e como mostruário de imagens estereotipadas de alteridade e de aventura.
Flash Gordon por E. P. Jacobs em 1942. |
Quando os americanos entraram na guerra em 1942, as bandas desenhadas americanas deixaram de poder publicar-se na Bélgica. Como muitas séries eram produzidas em folhetins diários ou semanais, muitas histórias ficaram, assim, incompletas. No caso da série Flash Gordon, nessa altura desenhada por Alex Raymond, a solução da revista Bravo foi pedir a E. P. Jacobs que a continuasse, imitando o estilo do autor americano. E os responsáveis da revista ficaram, pelos vistos, satisfeitos com o tratamento que E. P. Jacobs deu à série, porque, quando a censura nazi exigiu a interrupção da mesma, em inícios de 1943, lhe pediram que criasse uma nova série no mesmo estilo.
Na realidade, Le Rayon U é tanto ao estilo de Flash Gordon que, em certos aspetos, parece que apenas se mudou o nome às personagens e, nalguns casos, o seu lugar na hierarquia de heróis: Babylos, o imperador da Austrádia, parece o imperador Ming das histórias de Flash Gordon; Marduk é parecido com Zarkov, o lorde Calder com o príncipe Barin, o major Walton com Flash Gordon, Sylvia Hollis com Dale Arden e só o mau da história, Dagon, não se inspira numa personagem de Flash Gordon, mas antes, ao que parece, no próprio desenhador. Também se podem ver algumas das personagens do Rayon U como personagens de transição entre Flash Gordon e Blake & Mortimer, a série que E. P. Jacobs começaria a produzir em 1946 e que lhe traria fama mundial: Calder dará origem a Blake e Dagon será o Olrik da nova série. E, se lhe substituirmos o bigode por uma barba, o sargento MacDuff é muito parecido com Mortimer (ver mais aqui sobre as pessoas em que se inspiram as personagens).
Mundo perdido de Conan Doyle, um El Dorado inca e subterrâneo, dracares viquingues, moai da Ilha da Páscoa (!) e um kraken vermelho às pintas. Tem também um imperador malvado, desejoso de se apoderar, para o mal, de uma arma que um cientista altruísta acaba de inventar, para o bem; e o imperador tem ao seu serviço um espião astuto e cruel, ao passo que, do lado do cientista, há uma assistente atraente e destemida e um explorador intrépido, ajudado por um servo devoto e valente, de turbante e nome orientais, e não menos valentes militares de pose aristocrática. O fato do herói faz lembrar Robin dos Bosques e o sargento tem um capacete a bem dizer de legionário romano… A assistente do professor é tão bonita que o chefe dos macacos-homens e o imperador inca se apaixonam perdidamente por ela e a querem para mulher. Os macacos-homens vivem em aldeias que evocam sem dúvida, para o leitor da época, aldeias africanas... Le Rayon U é um repositório completo de personagens, situações, criaturas, cenários e preconceitos que, das Minas de Salomão de Rider Haggard aos Indiana Jones de George Lucas e Steven Spielberg, nos oferecem as narrativas de aventura.
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* Em 1974, foi publicada, primeiro na revista Tintin e depois como álbum, uma nova versão do Rayon U, com paginação, cor e desenhos atualizados e balões de diálogo. Foram também publicadas duas versões a preto e branco, na Bélgica em 66 e em França em 67, de que não encontro imagens em linha. O prefácio da edição dinamarquesa (U-strålen. Copenhaga: Cobolt, 2011) diz que a edição original a preto e branco já não existe – são duas incorreções numa frase só.
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