Ena, o que para aí anda de sabedoria em pacotes a circular na Internet e por correio eletrónico!
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A exortação a sermos nós próprios, por exemplo, deve ser do que mais recorrente há dessa internética filosofia de algibeira. Já se sabe que a ideia de uma identidade essencialmente dualista é cara à maior parte das pessoas: parece que há o que nós somos de facto e o que nós somos sem ser de facto, mas não sei bem o que é uma coisa e a outra. Aliás, isso nunca é explicado, provavelmente porque não há nada a explicar. Pode alguém ser quem não é? Mesmo quando se finge ser outra pessoas, vá, caso extremo, somos nós a fingir, ou não? E se fingimos é porque somos, de facto, fingidores. Mas enfim...
É certo que uma frase muito divulgada sobre o tema é também “Sê tu próprio. Os outros já estão todos ocupados”, que resume, com saudável ironia, tudo o que há a dizer sobre o assunto, mas não chega para neutralizar os disparates
[1].
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Outra ideia estranha muito divulgada nas redes sociais é a da oposição entre
ser e
ter. Digo outra ideia, mas ela segue, em grande medida, a oposição que referi no parágrafo anterior entre algum eu essencial e outro eu acessório e falso: o ser é o essencial e o ter é o acessório, o descartável. Evidentemente, louva-se o ser e, conforme o grau de radicalismo do aforismo, exorta-se a desvalorizar ou a abandonar o ter.
A realidade é, infelizmente, um bocadinho mais complicada: ter e ser são muitas vezes usados como léxico
alternativo a predicações iguais: ter uma grande inteligência ou ter uma
grande capacidade é a mesma coisa que ser muito inteligente ou ser
muito capaz. Mesmo que limitemos o ter ao seu sentido material de “possuir, ser dono de” e restrinjamos o seu “complemento direto”
[2] a palavras que referem objetos materiais, nem tudo se torna tão claro como alguns pretendem que seja, porque ter muitas coisas é ser rico e ter poucas coisas é ser pobre e, segundo a lógica que se propõe, parece que é preferível ser rico ou ser pobre a ter respetivamente muitas coisas ou poucas. Pensar que o que se tem só acessoriamente nos define (no tal estranho sentido do não fazer verdadeiramente parte do nosso ser) é uma proposição indefensável, creio eu: a riqueza, a posição social, o poder, enfim, – ou a sua falta! – modelam obviamente o mais essencial no nosso ser, seja lá isso o que for.
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Outra ideia com grande fortuna é o elogio da “loucura”, sobretudo através de uma citação de Jack Kerouac:
As únicas pessoas para mim são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, as que nunca bocejam nem nunca dizem um lugar-comum, mas ardem, ardem, ardem, como fabulosos fogos de artifício explodindo com aranhas entre as estrelas e no meio vê-se irromper a luz central azul e toda a gente diz «Ena!»[3]
Não deixa de ser curioso que a maior parte das pessoas que partilha esta frase siga muito pouco do que ela prega, quanto mais não seja porque partilhar a frase é, em si mesmo, uma negação do que ela defende, pelo menos desde que se tornou um lugar-comum, e porque partilhar citações na Internet tem pouco a ver com arder, arder, arder e suscita antes um grande bocejo...
A minha ideia (inverificada e generalizada – como não se deve, peço desculpa! – a partir dos exemplos das pessoas cujas vidas conheço e vejo partilharem a frase…) é que, quanto mais banal e mesurada for a vida de uma pessoa, mais probabilidade há de ela partilhar alguma forma de elogio da vida vivida na faixa de ultrapassagem. Hmmm...
Prefiro a esta outra frase que não me levarão a mal se a atribuir a Leo Mathisen, embora seja provavelmente (muito!) anterior: “Take it easy, boy, boy!”
Leo Mathiesen/Svend Hauberg, "Take it easy, boy, boy", 1940
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São milhares de chavões que por aí circulam à força de clique&partilhe, e não consigo
dizer mal falar de todos neste texto, mas não quero deixar de referir o aforismo “Há gente tão pobre que só tem dinheiro”, que muda de autor de cada vez que é repetido (e é muito repetido…), quando não aparece, uff…, sem menção da autoria.
Bom, não quero deixar de o referir, mas não sei bem o que dele hei de dizer… Que se há de dizer de uma frase assim, digam-me lá? Não que não nos possamos ralar com a pobreza de espírito dos ricos, se tivermos muito espaço mental para toda a sorte de ralações, mas, pela alma de quem lá têm, então o que nos deve preocupar não é antes a situação dos muitos milhões de pessoas que são tão pobres que não têm mesmo dinheiro?
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Para terminar, um pequeno comentário a uma frase diz-que-de-Einstein
[4]:
Temo o dia em que a tecnologia ultrapasse a nossa interação humana. O mundo terá uma geração de idiotas.
A conclusão costuma ser, claro está, que “esse dia já chegou”. Evidentemente, Einstein nunca disse tal coisa (
obrigado, Quote Investigator), até porque não se vê nenhuma razão para que pensasse algo parecido com isso; mas é certo que a tecnologia é realmente temível! Se assim não fosse, aliás, nunca teria escrito este texto. Permitam-me, portanto, que afine a frase falsamente atribuída a Einstein. Devem, naturalmente, atribuir-me a mim a versão melhorada da sentença, mas, se quiserem atribuí-la a Rudyard Kipling ou a Luís XIV, também pode ser:
Temo o dia em que a tecnologia permita difundir informação fantasiosa cuja veracidade ninguém verificará e cuja plausibilidade ninguém questionará; e permita a toda a gente armar-se em esperta exibindo aforismos de grande efeito e informação pseudocientífica e toda a sorte de apatetadas teorias da conspiração...
Se pensarem que esse dia já chegou, pensem melhor: infelizmente, ele sempre existiu…
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[1] Como não podia deixar de ser, a razoável proposta “Be yourself. Everyone else is already taken.” é quase sempre erroneamente atribuída a Oscar Wilde,
que nunca disse nem escreveu tal coisa…
[2] Não se trata de um verdadeiro complemento direto, porque
ter não se porta o mais das vezes como um verbo transitivo. Por exemplo, “muita fome era tida por ele” não se pode dizer, pois não?, por muitas voltas que se queira dar à língua…
[3] É claro, para não se fugir à regra em voga de nunca citar corretamente, mesmo esta citação de Kerouac é o mais das vezes substituída por outra que também lhe é atribuída, mas que não foi de facto escrita por ele, mas sim por Rob Siltanen e Lee Clow para uma campanha publicitária da Apple. A versão em português do Brasil, que é a mais divulgada, é assim (ligeiramente emendada):
Isto é para os loucos; os desajustados; para os rebeldes; os desordeiros; para aqueles que possuem 4 olhos, para aqueles que veem as coisas de maneira diferente, para aqueles que não seguem as regras, para aqueles que não respeitam o status quo. Você pode humilhá-los, discordar deles, ou tentar atingir seu fogo interior, mas o que você simplesmente não pode fazer é ignorá-los, porque eles mudam as coisas, empurram a raça humana para frente. Embora alguns possam parecer loucos, são os melhores. Porque as pessoas que são suficientemente loucas para pensar que podem mudar o mundo são o futuro.
[4] Coitado de Albert Einstein, é a maior vítima das citações erradas, porque é o mais popular dos grandes cientistas – ou o único grande cientista realmente popular… Se alguém disser que uma frase é de Richard Feynman ou Rodolfo Llinás, por exemplo, não tem o mesmo impacto, pois não?