É uma ideia generalizada, creio eu, que na música popular europeia e americana predomina o esquema de estrofes e refrão (um refrão sempre igual e curto, de um ou dois versos), com uma ponte, se a há, antes ou depois do refrão. É possível que seja mesmo essa a estrutura mais comum ou que, pelo menos, já o tenha sido – não sei; mas há muitos outras estruturas possíveis. E há também muitas canções que não obedecem a esquemas regulares, ou os alteram ou desorganizam. E passo a apresentar-vos, se as não conhecerdes, três canções bonitas deste ano de graça de 2014:
“Rêverie on Norfolk Street”, do duo Luluc, parece – e é-o, de facto! – uma canção popular bastante canónica, com uma melodia simpática, embora também não seja especialmente inspirada, e uma letra bem escrita, sem ter nenhum grande achado. Um olhar mais demorado revela algumas irregularidades na estrutura… E uma dúvida: o refrão deve ser o último verso de cada quadra e os três versos que se seguem à segunda e à terceira quadras devem considerar-se uma ponte, não é verdade*?
“Killer of birds”, de Jesca Hoop, tem uma estrutura, uma melodia e uma letra menos canónicas que “Rêverie on Norfolk Street” e, na minha opinião, bem mais inspiradas, mas partilha uma características da canção dos Luluc: não sei se devo considerar refrão a frase repetida no fim das estrofes (“love you the most”) ou a sequência de quadras que se repete …. A letra e melodia da canção repetem-se duas vezes, como as canções tradicionais do Chaco por exemplo (só falta alguém gritar “¡se va la segundita!” antes da repetição... )
Em geral, há pouco a dizer sobre as canções populares, mas é claro que se pode dizer mais que apenas a estrutura de rimas e estrofes e refrães. Mas fica isso para outra vez, se a houver. O que quero agora dizer é o seguinte: Há quem defenda que uma das especificidades do humano relativamente aos outros animais é a capacidade de repetir estruturas em esquemas organizados, em sequências lineares ou encaixando-se umas dentro das outras. Somos, por isso, o único animal que faz música. E, digo eu agora, somos também capazes de desorganizar as estruturas regulares que criamos – para as tornar mais interessantes, para realçar que cada criação é única, por muito que siga o esquema de base de outras criações. Mas queria sobretudo apresentar-vos, se as não conhecíeis, três canções bonitas deste ano de graça de 2014.
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* Numa primeira versão deste texto descrevia pormenorizadamente a estrutura irregular das canções, mas achei que cabia mal essa descrição num texto destes e resolvi que, pondo aqui as letras, pode quem ler não só dar-se rapidamente conta dessas irregularidades como acompanhar a canção. Também comecei a traduzir as letras das canções, para quem não percebesse inglês, mas o resultado foi tão insatisfatório que desisti de aqui publicar as traduções. Quero só chamar a atenção de um pormenor da letra de "Murder of birds" que creio que pode escapar mesmo a quem fale bem inglês: muitos saberão que bird significa, além de "pássaro", "rapariga", mas poucos devem saber que que, além do seu significado de "assassinato", a palavra murder se usa na expressão murder of crows, "bando de corvos". Ah, e embora, nas transcrições que encontro da letra "Arctic shark", o primeiro verso seja sempre "How can I proceed with thee?", parece-me que é de facto "these" que se ouve e não "thee"...
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