07/07/15

Ambiguidade e ordem das palavras


[Homonímia e ambiguidade]
Dizia-me alguém, numa discussão sobre o acordo ortográfico, que a homonímia de ato (do verbo atar) e ato (ação) podia causar ambiguidade em certas frases. Se for verdade, é preciso dar muitas voltas à cabeça para encontrar um caso em que isso possa acontecer; e eu, que até tenho jeito (gaba-te, cesto…) para descobrir este tipo de curiosidades, não consigo inventar uma frase com uma ambiguidade que resulte de uma coisa dessas. Imaginem o que seria se se confundissem de alguma forma calo e calo, coma e coma, falo e falo, mato e mato, nada e nada, rio e rio, saia e saia… e os outros milhares de casos em que há uma forma verbal e um nome com a mesma forma fonética e gráfica (é um jogo engraçado, vejam lá quantas homónimas deste tipo conseguem encontrar).

Eu diria antes que, em princípio, nunca há ambiguidade entre homónimas de categorias morfológicas diferentes – que não podem, por isso, ocorrer no mesmo contexto. Mais provável seria a ambiguidade criada por homónimas da mesma categoria ou, como é mais comum, palavras que podem referir vários entes ou objetos, ou que podem deles predicar várias qualidades, estados, atividades, etc., como corrente, mangueira, número, esperar, comer, etc. Mesmo para estas palavras, porém, é preciso dar muitas voltas à cabeça e não vejo bem, por exemplo, em que situação alguém fique na dúvida, quando ouve falar de gatos, se se trata de felinos domésticos, de enganos nas contas, de grampos, ou de pieira…

Significa isto que não existem frases ambíguas? De modo algum. É claro que existem frases ambíguas!, mas são outras as causas da verdadeira ambiguidade – ou anfibologia, como só agora descobri que também se pode chamar. A ambiguidade mais comum, estou eu em crer, resulta da maneira como se ordenam na frase certos elementos – de não se poder decidir se uma expressão modifica, por exemplo, a frase toda ou um sintagma apenas. Dou-vos um exemplo tirado de um e-mail que recebi um dia destes:
Havemos de descobrir como fazer o pagamento antes de ele começar o trabalho.
Sem mais informação, uma pessoa não sabe se a ideia é fazer o pagamento adiantado ou apenas descobrir antes do início de trabalho como será feito o pagamento (era este último significado que se queria dar à frase.)

[Posição livre e posição fixa de advérbios nas frases]
Não vos vou maçar agora com uma lista de exemplos de ambiguidades, há dezenas de páginas na Internet sobre o assunto. Quero só referir uma coisa curiosa, a propósito da posição dos advérbios e locuções adverbiais nas frases: ouvi dizer várias vezes, algumas delas a mim próprio, que, nas línguas latinas, a posição dos advérbios é livre, ao contrário do que acontece em dinamarquês (e creio que várias outras línguas germânicas, mas só conheço bem o caso do dinamarquês). Mas isto nem sempre é verdade. E nem sempre é só para resolver ambiguidades que o advérbio tem de estar, em português, numa determinada posição. É certo que, como declaração simples, tanto faz dizer Amanhã vou a Copenhaga como Vou amanhã a Copenhaga como Vou a Copenhaga amanhã, mas Sempre vou a Copenhaga nas férias é diferente de Vou sempre a Copenhaga nas férias e tanto ?Vou a Copenhaga sempre nas férias como ??Vou a Copenhaga nas férias sempre são fases muito estranhas, se não claramente agramaticais.

Como se passam as coisas nas línguas em que há uma posição fixa dos adverbiais? Não pode isso também criar ambiguidades? Quando comecei a aprender dinamarquês, achava muito estranho, por exemplo, que se fizesse obrigatoriamente a negativa de verbos de opinião e afins e nunca das suas completivas. Não se pode, por exemplo, construir uma frase com a estrutura que corresponde diretamente a Acho que ele não tem razão, tem obrigatoriamente de usar-se a estrutura correspondente a Não acho que ele tenha razão. Pode pensar-se que a questão da negativa simples é outra história, mas, se substituirmos não por nunca ou sempre, a regra continua a aplicar-se. A verdade é que, por muito que a frase Acho que ele nunca tem razão não seja, stricto sensu, o mesmo que Nunca acho que ele tenha razão, não há, na prática, diferença nenhuma entre as duas frases e há que dar algumas voltas à cabeça para encontrar uma frase em que a negativa da principal produza um sentido diferente da negativa da completiva. E o mesmo se pode dizer em relação a um advérbio como sempre: Acho sempre que ele toca bem é, na prática, o mesmo que Acho que ele toca sempre bem.

Mas é sempre assim? Bom, a frase, Acho que ele não é muito inteligente, por exemplo, é já claramente diferente de Não acho que ele seja muito inteligente, se esta última frase se usar para negar a superior inteligência de alguém sem lhe negar inteligência – que é o que se faz com a primeira frase: nega-se-lhe a inteligência, precisamente. Mais complicadas também são frases como Penso às vezes que ele é uma pessoa atormentada e Penso que ele às vezes é uma pessoa atormentada, que são bem diferentes uma da outra, não é verdade? E então, como resolvem isto as línguas de posição fixa do advérbio? No primeiro caso, a ambiguidade desfaz-se normalmente com seleção de palavras diferentes: para negar a inteligência de alguém, dir-se-á o que, diretamente traduzido, corresponde a Acho que ele não é especialmente inteligente; e, para negar que alguém é tão inteligente como se afirma, usa-se a estrutura corresponde ao português Acho que ele não é [assim] tão inteligente; e em nenhum caso a frase com muito inteligente é bem aceite pelos falantes. No segundo caso, como se trata de desfazer realmente uma ambiguidade, aceita-se o que nos outros casos não se aceita, e pode passar-se a locução adverbial às vezes para a completiva. Como é mesmo necessário, pode dizer-se Penso que ele às vezes é uma pessoa atormentada, com a locução adverbial na subordinada.

Tudo isto para concluir que se deve ter confiança nas línguas, porque elas desenvolvem naturalmente maneiras de evitar as ambiguidades. As ambiguidades são raras e nunca resultam de defeitos do léxico ou da sintaxe, apenas de alguns usos abstrusos (a cacofonia é propositada) das possibilidades que as línguas nos dão.

[Uma digressão: modificadores apositivos e modificadores restritivos]
A propósito de ambiguidades e de línguas germânicas, uma pequena excursão. Saio do domínio da língua e passo para o da escrita. Problemático, por causar frequentes ambiguidades (aqui, podia ser também “por causar frequentemente ambiguidades”, com modificador do verbo, sem alteração do significado) é o uso da vírgula gramatical, à maneira alemã ou dinamarquesa, que obriga a delimitar todas as subordinadas e não distingue, por exemplo, relativas apositivas de relativas restritivas – isso cria ambiguidade:
As associações da região que integravam o projeto receberam formação sobre variedades híbridas.
Com uso obrigatório de vírgulas a delimitar a relativa, ficamos sem saber se receberam formação apenas as associações que integravam o projeto e as outras não (frase acima), ou se todas as organizações da região integravam o projeto e receberam por isso formação, que é o que diz a frase com vírgulas em português:
As associações da região, que integravam o projeto, receberam formação sobre variedades híbridas.
Esta história também tem uma moral: como na escrita se eliminam muitas redundâncias e se usam estruturas normalmente ausentes do discurso oral, podem criar-se na escrita ambiguidades que nunca surgem na oralidade. 

[Ambiguidade ou deselegância?] 
Mas voltemos às ambiguidades causadas pela má ordenação dos elementos da frase, para rematar. É de notar que muitos dos exemplos apresentados quando se fala de ambiguidade são um pouco exagerados. Quer dizer, são frases de facto textualmente ambíguas, mas o contexto ou o senso comum do interlocutor resolve a ambiguidade.

Veja-se, por exemplo, a frase O José falou com o Rui deitado no chão. Vi uma frase semelhante referida como exemplo de anfibologia e é, de facto, uma frase ambígua, mas só se não houver mesmo contexto nenhum, e uma frase assim costuma fazer parte de uma narrativa. Vi algures outro exemplo do tipo O homem disparou sobre o assaltante de pijama. Bom, neste caso, mesmo que não haja contexto nenhum, é difícil imaginar um ladrão de pijama, não vos parece?

O mesmo em relação a estas duas frases curiosas:
Durante o julgamento, a defesa protestou contra o uso de algemas pelo traficante, alegando que ele feria decisão do Supremo 
e
Resgatada mulher sequestrada após passar 21 anos em uma cova
Também é certo que, sem mais contexto, cada uma delas tem duas leituras possíveis, mas uma das leituras é tão estranha que a recusamos imediatamente: o que seria um traficante ferir uma decisão do Supremos e isso ser motivo para recusar o uso de algemas? E não seria azar a mais ser sequestrado depois de passar 21 anos numa cova? Ambiguidade? Em última análise, sim, mas, na prática, é mais de deselegância, de falta de estilo, que se trata nestes três últimos casos, não vos parece?, que propriamente de ambiguidade…

4 comentários:

jj.amarante disse...

É por causa deste tipo de argumentos que me parecem sólidos que não me atrevo a criticar o acordo ortográfico por este lado do estabelecimento de ambiguidades e de questões gramaticais das quais só me ficou a prática.

As minhas críticas principais são o falhanço do objectivo declarado de unificar a ortografia da língua portuguesa, uma vez que além da de Portugal e do Brasil vamos passar a ter também a "antiga de Portugal=Angola=Moçambique" passando assim de duas ortografias para pelo menos 3. Não vejo também motivo para tanta pressa em acompanhar a fonética pois durante a minha vida sempre escrevi,por exemplo, "óptimo" e nunca ouvi o "p", o mesmo acontecendo com as outras consoantes "mudas" que foram eliminadas. Assim, essa alegada evolução fonética não existiu entre o momento em que eu aprendi a escrever e os dias de hoje. Continuo a pensar que foi um erro, fazendo-nos incorrer em despesas de tornar inúteis muitos livros sem benefício evidente.

RH disse...

Pois é, argumentos que "parecem sólidos", mas não são. É mesmo só aparência e casca. E basta isto: o que hoje é a regra da excepcionalidade, era antes do AO a excepção à regra. E bem pode o Lindegaard continuar a tentar lançar areia para os olhos das pessoas e a defender o indefensável. Ele e uns quantos, porque o AO é mesmo só uma questão de uns quantos que impuseram uma ortografia acientífica, ilógica e incongruente ao povo português.

Vítor Lindegaard disse...

Cara ou caro RH, o meu texto é sobre ambiguidade, não sobre o acordo ortográfico. Mas não percebi a sua argumentação. Aliás, tenho a impressão de que se esqueceu de argumentar: em que situação é que um nome e uma forma verbal iguais podem criar ambiguidade? (Presumo que seja a esta parte do texto que se refere).

Vítor Lindegaard disse...

Caro José Júlio, em vez de lhe responder aqui, hei de publicar em breve um texto, que já tenho alinhavado, sobre essas questões. Também não sei quando deixou de pronunciar-se o p de óptimo. Pode nunca se ter pronunciado, não sei. Tenho tendência a crer que, por exemplo, o p de septimo, que se vê no século XVI, não se pronunciou nunca, mas é só um palpite. Não me vai ser fácil, aqui em Troense, investigar essa questão, mas vou ver o que consigo descobrir, porque agora fiquei curioso em relação a isso.