Mimi Perrin foi fundadora, mentora e letrista de um dos melhores grupos de vocalese de sempre, os Double Six. Vocalese – é natural que muitos não saibam porque é uma prática com um número relativamente restrito tanto de intérpretes como de ouvintes – é um género de jazz vocal em que se agarra num tema instrumental e se lhe cola uma letra, com a técnica mais normal de quem faz letras para melodias preexistentes, que é uma sílaba para cada nota. Quero chamar a vossa atenção para a diferença que há relativamente a canções de jazz «normais», em que é cantada uma melodia composta para voz, e em relação ao scat, que são solos vocais improvisados sem palavras, só com sons sem significado. No vocalese não há improvisação. A melodia cantada pode ter sido originalmente improvisada (um solo de saxofone, por exemplo…); mas, a partir do momento em que é posta uma letra nessa melodia, nasce um tema de vocalese que vai ser cantado sempre da mesma maneira daí para a frente. É sempre difícil definir uma origem absoluta de um género musical, mas, para simplificar, digamos que o vocalese foi inventado por um senhor chamado Eddie Jefferson, no início da década de 50, e que foi sobretudo Jon Hendricks, o fundador e pivô do grupo Lambert, Hendricks & Ross, que o complexificou e sofisticou, passando das melodias simples às canções com várias vozes e, às vezes, letras sobrepostas.
Apresentado que foi o vocalese, voltemos a Mimi Perrin e às suas traduções. Numa entrevista de 1964 (aqui, até aos 2:11*) Mimi Perrin explica a sua filosofia de letras de vocalese, a tal tradução. Para quem não fale francês ou não esteja para ouvir a entrevista, eis o que ela diz (traduzo eu):
Quando se ouve com atenção um grupo de jazz (…) não me parece que os instrumentos façam o que normalmente se chamam onomatopeias, ou seja, tabadá ou tubudu, mas antes que têm um fraseado, um som específico, que varia conforme os instrumentos e que eu tento, de alguma forma… É como uma tradução de uma língua estrangeira, digamos assim; neste caso é uma tradução da música, do som produzido por estes instrumentos. É por isso que, por exemplo, se se tratar de uma parte de trompete, vou tentar reproduzir o ataque do trompete com tt ou com dd. Posso dar um exemplo da música que cantámos há bocadinho [“Blues in Hoss’ Flat”, de Count Basie]... Não são só trompetes, mas enfim... O princípio, a introdução desse tema (…) é composta de ataques sucessivos e a frase que, para nós, lhes corresponde é « pour tout vous dire, nous partons tenter le bon d’antan » [«para dizer a verdade, partimos para experimentar o bom de antigamente»]. Se reparar, são saltos de tt, de bb, de dd, que reproduzem esse som. Se fizer só tugudugudu, não tem nada a ver.Fala-se muito da dificuldade de traduzir poesia e uma das dificuldades da tradução de poesia é transpor para outra língua ritmos e sonoridades. Mas, pelo menos, na tradução de poesia, há algum significado a que o tradutor se pode agarrar. Se for tudo muito vago ou se os sentidos produzidos forem muitos ou muito pouco convencionais, pelo menos cada palavra não deixa de carregar consigo algum significado, imagens que sejam. Traduzir de trompete para francês é bem mais difícil, acho eu.
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* No vídeo hiperligado (é assim que se diz linkado em bom português?), depois da entrevista, os Double Six interpretam "Four Brothers" de Jimmy Giuffre. Não sei em que versão se baseia esta versão vocalese (não é na original da orquestra de Woody Herman), mas, seja ela qual for, diz na descrição do vídeo que Mimi Perrin canta o solo de sax alto, Hélène Devos e Annie Vassiliu fazem os trompetes, Bernard Lubat canta o solo de sax tenor, Gaëtan Dupenher o de sax barítono e Jef Gilson faz o trombone. A letra é, como todas, de Mimi Perrin.
Deixo-vos também, já agora, uma hiperligação para a primeira versão vocalese do tema, em inglês, de Lambert, Hendricks & Ross (1955), o grupo que inspirou Mimi Ferrin a começar a fazer vocalese; e outra para a versão dos Manhattan Transfer (1978), que creio que é a mais famosa. Para compararem :) Boa audição.
P. S.: Logo depois de publicar este texto, encontrei um ensaio recente sobre este mesmo assunto: How Mimi Perrin Translated Jazz Instrumentals into French Song, de Benjamin Givan, aqui.