Uma vez, no Facebook, alguém propôs um jogo, em inglês: arranjar palavras com um prefixo de negação a que não correspondesse um antónimo sem o prefixo. Por exemplo, há
impeccable, mas ninguém ouviu falar de *
peccable… Achei graça e propus aos meus amigos facebookianos de língua portuguesa o mesmo jogo na nossa língua. O resultado surpreendeu-me um pouco: há muito mais palavras desse tipo do que eu imaginava.
Antes de mais, conviria talvez explicar que os chamados prefixos de negação ou privação são, em português, os seguintes:
• a/an-, de origem grega, que se encontra em palavras como
acrítico,
agnóstico,
amoral,
assexuado,
atípico, etc.;
• des-, de origen latina, que se encontra em palavras como
desacerto,
desonesto,
desaconselhável, etc.; e
• in-, o prefixo de negação mais comum, que muda ligeiramente de forma (gráfica e/ou fonética) consoante o som que tem depois:
inapto,
inviável,
insatisfeito;
imbatível,
impossível;
ilógico,
imoral;
irreconhecível. (É preciso não confundir este prefixo com outro
in-, que significa «movimento para dentro», às vezes transformado em
em/en-, como em
enterrar. Por exemplo, em
impropério, que parece ser uma palavra com um
im- que negaria algo
próprio, no sentido de «apropriado», o
im- não é, de facto, um prefixo de negação: vem do verbo latino
impropero, que é «entrar de rompante», formado de
propero, «apressar-se, acelerar», com a preposição
in, «para dentro».)
É complicado se se deve considerar
dis- um prefixo de negação/privação. Embora atualmente seja assim entendido, o sentido original grego é «mau»:
dispneia,
disenteria,
dispepsia,
disfasia, etc. E pode levantar-se a mesma dúvida relativamente ao
dis- de origem latina, que é originalmente mais de separação que de negação e que se encontra, por exemplo, em
discordar e
discussão. Não considerarei aqui essas palavras.
Quanto às palavras com
não, como em
tratado de não agressão, o
não não é propriamente um prefixo e, com a nova grafia, nem sequer se liga com hífen:
não alinhado,
não contradição,
não intervenção. É interessante notar que há diferença entre prepor
não a uma palavra ou usar outro prefixo negativo (pensem em
não alinhado e
desalinhado, por exemplo), mas, claro está, todas as palavras formadas com
não têm uma correspondente sem
não [sorriso], pelo que essas palavras também aqui não nos interessam.
Há ainda uma categoria de falsos negativos, em que o aparente prefixo negativo é de facto um elemento de reforço, como em
desinfeliz,
destrocar,
desinquieto. Uma curiosidade, dentro deste tipo de palavras, é a palavra
descascar. Na sua origem, creio que o
des- de
descascar é um prefixo de reforço, já que
cascar significa o mesmo que
descascar, «tirar a casca». Mas creio que
descascar é atualmente sentido como tendo um verdadeiro prefixo de negação, como se
cascar fosse pôr uma casca e
descascar tirá-la. Não sei se contribuiu para essa perceção o facto de
cascar, com o significado de «tirar a casca», ter caído em desuso ou se, pelo contrário, foi essa perceção que contribuiu para o desaparecimento do significado antigo de
cascar.
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Mas vamos então às palavras portuguesas com prefixo negativo de que não há antónimo positivo – normalmente porque só a forma com prefixo de negação evoluiu do latim ou porque só essa forma foi importada de alguma outra língua. Eis uma lista, forçosamente incompleta, de palavras desse tipo, com breves comentários a cada uma:
- Analgésico é formado de analgesia, termo médico para «supressão da dor», negativo de algesia, «sensibilidade à dor», mas *algésico não existe.
- Anemia, como o nome de muitas doenças, é de origem grega: haimas é sangue e anaimia é falta de sangue. O temo positivo, *(h)emia, não existe como vocábulo independente, mas -emia ocorre como elemento de formação de palavras como hipoglicemia ou leucemia, por exemplo.
- Anónimo é «(feito por alguém) de que não se sabe o nome», mas não há *nómino para dizer o contrário. Uma palavra com a mesma raiz é denominar, mas denominado não é antónimo de anónimo.
- Ateu e ateia são palavras curiosas. Se é claro que não há *teu e *teia para referir quem crê num deus, já ateísta e ateísmo, com a mesma raiz grega (theos, «deus»), têm um antónimo não prefixado, teísta e teísmo.
- Diz-se descarado de alguém que não é envergonhado ou que não tem pejo em desrespeitar convenções sociais, mas *carado não existe. Os dicionários consagram um verbo descarar de onde teriam derivado o adjetivo, mas nunca
o ouvi. É capaz de ter caído em desuso, não sei.
- *Façatez não existe, só desfaçatez. Trata-se de uma palavra importada já com o prefixo, do castelhano desfachatez, que, por sua fez, a foi buscar ao italiano sfacciatezza. O s- inicial do italiano é um prefixo privativo correspondente aos nosso des/dis- que se junta à palavra faccia, «cara», pelo que a expressão é paralela ao nosso descaramento.
- Desdenhar é o contrário de um *denhar que não existe, mas que, a ter existido, seria uma forma irmã de dignar. Originalmente, *denhar/dignar devia ser «tratar com dignidade», o que justifica o significado de desdenhar, mas dignar (que, em português moderno, só conheço como verbo reflexo) não é o contrário de desdenhar, é antes «condescender em», «fazer o favor de».
- Desvirtuar, que tem origem em virtude, usa-se sobretudo no sentido de «trair ou deturpar o [bom] propósito ou sentido de alguma ação ou afirmação», mas *virtuar não existe.
- Não consigo saber (acho que ninguém sabe) se o im- de imbecil é um prefixo de negação. Existe a teoria de que o latim imbecillus («fraco, débil»), que é o étimo da palavra, derivaria de um *imbacillus formado pelo prefixo privativo im- preposto a bacillus («pau», étimo de bacilo), e que significaria, por isso, «sem bengala», mas há quem considere esta hipótese fantasista.
- Imberbe é quem não tem barba, mas quem tem não é *berbe. Esperava-se talvez algo como *imbarbe, da família de barba, mas não, aquele estranho -e- já existia em latim e nunca se «regularizou» nas línguas neolatinas.
- Imune tem uma história curiosa. O latim immunis é «isento de impostos ou serviços públicos» e forma-se de munis, «sujeito a impostos ou serviços públicos», palavra de uma família que dá, entre outras, a palavra município em português. Só o imune sobreviveu e nunca houve *mune nas línguas latinas. Não sei se a palavra imune chegou alguma vez a ser usada em português no sentido de «isento», como foi usada em francês e inglês antigo. O sentido atual é provavelmente importado do francês no séc. XIX.
- A palavra incólume vem do latim incolŭmis e creio que era uma palavra que só existia com o prefixo de negação. Segundo o que pude encontrar, *colŭmis poderia ser da família de calamitas, «calamidade».
- Inédito é «não publicado» e não há o adjetivo *édito com o significado de «publicado», só o nome.
- Inerte vem já prefixado do latim. Significava, ao que vejo, algo como «sem profissão/sem trabalho», porque o prefixo privativo se juntou originalmente a ars, artis, «arte, ofício» e depois o -a- passou a -e-.
- Injúria também veio já do latim com o in- de negação. Forma-se de ius, que é «lei, direito, dever», da família de jus, justo, justiça...
- Se não está partida ou dividida, uma coisa está intacta, mas não está *tacta se estiver partida.
Na verdade, intacto é originalmente «não tocado», formado do particípio tactus do verbo tangere, «tocar». Da mesma raiz e com o mesmo significado original são as palavras íntegro e inteiro (duas formas divergentes do mesmo étimo latino) e integral, a que não correspondem nenhum *tegro, *teiro ou *tegral. Creio que um falante do português não tem consciência de que o in- inicial é, nestes casos, um prefixo de negação.
- Comida sem sal é insossa, mas não é *sossa a comida com sal. Em latim, havia sulsus e insulsus, feitos do particípio de salire, «salgar», mas só a palavra com prefixo negativo chegou ao português. E com duas formas diferentes, curiosamente, já que os dicionários acolhem insulso (que eu não conhecia), com o mesmo significado de insosso – mas *sulso não há.
- Quem sofre de insónia é ínsone. Não há *sónia nem *sone, mas pode discutir-se se sono se pode considerar o contrário de insónia...
- Inupto é «solteiro, por casar», mas uma pessoa casada não é *nupta. A forma existia em latim, mas, mais uma vez, só a forma prefixada chegou ao português. Temos nubente, da mesma família.
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É de notar que algumas palavras têm antónimos não prefixados registados nos dicionários, mas que devem ser palavras raríssimas, algumas talvez arcaísmos (?). Eu, pelo menos, nunca as vi nem ouvi. Sei, por exemplo, que estão dicionarizadas ou fazem partes de corpos lexicais as palavras batível, pávido, pecável, perdível, placável, cansável, cógnito, delével, trépido e usitado mas não me lembro de as ter ouvido. (Aplacável, conheço, claro, com o mesmo sentido de «que se pode acalmar, sossegar, mitigar, aliviar») Algumas delas, nem faço ideia de como se poderão usar (??? «Não viste O marciano? Deixa estar, também é um filme perdível…») Só conheço imbatível, impávido, impecável, imperdível, implacável, incansável, incógnito, indelével, intrépido e inusitado. Como me dizia Helena Galvão Soares, pode-se suspeitar que «há verbetes de dicionários que foram criados só para justificar a estrutura de outras palavras».
Deste grupo de palavras, de formas não prefixadas que me são desconhecidas, há algumas que me causam mais estranheza do que outras. Negável, por exemplo, que não me lembro de alguma vez ter ouvido, mas parece-me uma palavra normal, digamos assim, daquelas que, quando se ouvem pela primeira vez, se sabe bem que existiam mesmo antes de nos depararmos com elas.
Há também outros antónimos sem prefixo que, embora já os tenha visto e ouvido, são incomparavelmente mais raros que as formas com prefixo negativo: cauto e sólito são bons exemplos dessas palavras rebuscadíssimas, de ocorrência muito mais escassa que o incauto ou o insólito que dizem o contrário.
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Há também algumas palavras que, embora não tendo um antónimo positivo direto, têm antónimos formada da mesma raiz. Por exemplo:
- Não há *alfabeto com o sentido de «que sabe ler e escrever», ou seja, como contrário de analfabeto, mas usa-se para esse conceito a palavra alfabetizado.
- Se uma coisa não tem cor, é incolor; se a tem, não é *color, porque isso não existe, mas pode ser colorida.
- Não existe *menso, só imenso, mas existem mensurável e imensurável, com a mesma raiz.
- Um lugar pode ser inóspito, mas *hóspito não pode ser, só hospitaleiro.
- Se um crime não fica impune, é punido – mas *pune não há.
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Agora, interessante também é o caso de palavras em que a forma sem o prefixo negativo não é antónima da forma prefixada:
- Está afónico quem não consegue falar, mas não está fónico quem o consegue fazer — fónico significa antes «respeitante aos sons da língua».
- Os termos imobilizar e mobilizar não são, muitas vezes, o contrário um do outro, porque o primeiro tem frequentemente um significado físico de «fazer cessar o movimento», ao passo que o segundo se emprega sobretudo para dizer «recrutar» ou «angariar».
- Dizemos impassível de alguém que não demonstra emoções – e a palavra passível, que é da família de paixão, significa originalmente «emocionalmente envolvido ou afetado», mas nunca a vi usada com esse significado. Creio que atualmente só se se usa no sentido de «que pode ser objeto»: «O que ele fez é passível de castigo».
- Nem sempre indiferente é o contrário de diferente. O contrário de diferente é igual e indiferente tem muitas vezes outro significado. Diferente e indiferente podem ser antónimos em frases do tipo «É diferente escrever com ss ou ç, são palavras diferentes» e «É indiferente escrever com acento circunflexo ou não, as duas grafias são aceites», mas diferente não funciona como antónimo do indiferente em, por exemplo, «Ele mostrou-se indiferente às suas lamentações.»
- Também disposto não é o contrário de indisposto. Indisposto é sinónimo de maldisposto ou não muito bem-disposto. Não é fácil encontrar-lhe um antónimo que funcione sempre. Bem-disposto, por exemplo, só às vezes funciona.
- O dicionário regista para tratável o significado de «afável; sociável», mas eu só conheço tratável no sentido de «que se pode tratar». Como eu a conheço, a palavra intratável não é antónima de tratável, mas o dicionário não concorda comigo…
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Finalmente, há algumas palavras que me merecem comentários especiais.
O grupo desgraça, desgraçar e desgraçado é curioso. Podemos considerar que existe graça como antónimo de desgraça, quando as palavras se usam nas expressões cair em graça e cair em desgraça, por exemplo, mas graça não é o contrário de desgraça no sentido de «infelicidade» ou «catástrofe», etc., como desgraça não é o contrário de graça no sentido de «encanto» ou «piada». O contrário de engraçado, que pode ser quem é «bonito», «simpático» ou «divertido», pode ser desengraçado, embora não me pareça que esta palavra seja o contrário de todas as aceções de engraçado. Já engraçar me parece exatamente o contrário de desengraçar, mas posso não estar a ver todas as situações do seu uso…
Infame é outra palavra curiosa. Não existe a palavra *fame e infame não é quem não tem fama, mas sim «quem tem má fama». Podia pensar-se que mal-afamado, com a mesma raiz, podia ser um quase-antónimo e originalmente infame devia significar precisamente isso. Mas perdeu-se a consciência da relação com fama, e infame tornou-se um termo de apreciação negativa, sobretudo relativamente ao caráter ou à moral de alguém.
Em latim, nocere é «causar dano» (de qualquer tipo) e nocuu- ou nocente- o que causa dano. Encontro nocente registado nos dicionários e encontro quem defenda que a palavra nócuo existe em português, embora não a tenha encontrado em nenhum dicionário. Nunca vi nem ouvi nem uma nem outra palavra. Seja como for, inocente tem hoje em dia um significado diferente de inócuo, o que quer dizer que, aceitando que nocente existe, não é o contrário de inocente. Agora, tanto nocente como o pretenso nócuo têm um sinónimo com a mesma raiz, nocivo, pelo que se pode dizer que inócuo também faz parte das palavras com um antónimo com a mesma raiz. Mas inocente não.
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Alguma da informação veio inicialmente desta página (que a foi buscar a uma fonte que deixou de estar acessível), mas foi depois verificada, dentro do limite dos meios à minha disposição. Uma grande parte da informação etimológica vem do Online Etymology Dictionary, que usa fontes fiáveis. É um dicionário etimológico do inglês, mas, claro, pode também usar-se para a etimologia dos cognatos portugueses de palavras inglesas.
Os cartazes dos filmes são todos Wikimedia Commons menos um (Les Implacables), mas a sua utilização com baixa resolução para identificação do filme (nesta caso para ilustrar uma palavra) não deve ser problemática.