Muitas pessoas consideram Portugal um país mediterrânico, embora Portugal, do ponto de vista geográfico, não seja propriamente um país mediterrânico. Mas, culturalmente, pode Portugal considerar-se mediterrânico? Bom, uma questão destas é muito difícil — se não impossível — de responder, antes de mais porque é muito difícil — se não impossível — definir «cultura mediterrânica». É bem provável que Portugal tenha traços culturais semelhantes aos dos outros países mediterrânicos, até porque partilha, em certa medida, o mesmo espaço climático, com óbvias consequências na flora e na fauna disponíveis — quer naturais, quer domesticadas. Para dar um exemplo óbvio no que respeita à gastronomia, que foi o que me motivou a escrever este texto, Portugal faz parte da zona gastronómica do azeite, um traço importante da cultura material mediterrânica. Mas não faz parte das zonas bebidas das bebidas anisadas mediterrânicas.
![]() |
Pastis (Foto de Heike Schauz em Pixabay) |
Creio lembrar-me — mas a memória é sempre muito falível, ainda mais quando uma pessoa já vai nos 60, como eu — que tentaram a certa altura introduzir Ricard em Portugal, sem êxito nenhum. E lembro-me de que, em Lisboa, pelo menos, ninguém sabia quanto devia levar pelo Ricard esquecido nas prateleiras de bares e cafés, e nem como o devia servir, e várias vezes me aproveitei disso, pagando muito pouco por doses muito grandes.
Mas a que propósito vem tudo isto? É que recebi de prenda de Natal um kit de produção de pastis: aguardente a 40% (de batata ou de trigo, não sei) dessa «sem sabor», que se usa para, juntando-se-lhe especiarias várias, fazer akvavit condimentada; álcool etílico a 96%; e pacotes de anis de estrela, sementes de anis, sementes de funcho, sementes de coentros e raiz de alcaçuz. O resultado há de ser um pastis de estalo — eu nunca o fiz, mas já o bebi feito com a receita que vou utilizar e, creiam-me, é melhor que Ricard ou 51… Agora, talvez vos surpreenda, como me surpreendeu a mim, usarem-se dois tipos de álcool de base: porque não um apenas, mais ou menos diluído? Garante-me o amigo que me deu a receita que, se não se usar uma parte de álcool puro, não se obtém o tal efeito ouzo. Não tenho, infelizmente, conhecimentos de química que me permitam avaliar, já nem digo a veracidade mas, pelo menos, a plausibilidade da asserção do meu amigo. Podia investigar, mas não me apetece. E menos me apetece correr riscos: pastis que não fica branco quando se lhe mistura água, não, obrigado. De maneira que sigo a receita e não penso mais no assunto.
Para terminar, uma pequena nota algo lateral, a propósito de dois ingredientes do meu pastis: estou em crer que o alcaçuz e os coentros afastam Portugal não só do Mediterrâneo, mas de toda a Europa. Em toda a Europa que eu conheço se consomem doces de alcaçuz ou pastilhas de alcaçuz forte, mas a minha experiência é que os portugueses torcem sempre o nariz (literalmente) quando alguém lhos dá a provar. Quanto aos coentros, se as sementes não parecem ter muito uso na cozinha portuguesa (pelo menos, na que eu conheço…), já a utilização das folhas frescas da planta dá à cozinha portuguesa uma grande originalidade no contexto Europeu — acho que, saindo de Portugal e correndo toda a Europa, só se voltam a encontrar coentros frescos na Turquia. Ou estou a exagerar?