11/09/21

«Os verbos foram mudados, / Não ficou um só de pé !»

Joaquim Pinto de Sousa Macário é escritor seguramente desconhecido da maior parte dos leitores deste blogue. Também eu o desconhecia, até topar um dia, já nem me lembro nem como nem porquê, com esta digitalização da sua obra Satyras e galhofas: livro de versos alegres, publicada em 1899 por uma editora de Lamego, a Minerva da Loja Vermelha. 

Como amante que sou das coisas da língua, da sua história e das suas histórias, chamou-me muito a atenção esta “Resposta a uma carta que Nicolau Tolentino dirigiu do outro mundo ao auctor deste livro”, que vos quero dar a conhecer. E deixo-a tal como vem no original, em parte por preguiça de lhe atualizar grafia e corrigir pontuação, e em parte porque acho que o documento da história das palavras que o texto é ganha com documentar também uma fase da história da sua escrita.

Notem agora que Nicolau Tolentino, a quem Joaquim Pinto de Sousa Macário dedica as Satyras e galhofas e que é o explícito destinatário da carta em verso de que aqui se trata, morreu em 1811. Macário lista, portanto, expressões que ele crê que Tolentino não conheceria, ou seja, surgidas ao longo do século XIX. Se tem razão ou se se engana a avaliar a idade dos termos que refere como novidade é discussão que aqui não vou ter agora, embora, nalguns casos, tenha quase a certeza de que se engana: pança, por exemplo, muito provavelmente existiu sempre, em português, como aliás nas outras línguas latinas. Mas vejam que a maior parte deles se mantém até hoje, uns ainda como gíria, outros já como termos standard. Também é difícil perceber, no texto de Macário, em que registos se usavam na altura os diferentes termos, mas parece provável que se incluam na lista desde modismos finos (como fauteuil), até termos do registo informal, como carraspana, ou mesmo calão, como guita. É também de notar que se mantiveram até hoje os termos importados do francês que eram na altura novidade*. Mas chega de comentários. Desfrutai, como costuma dizer-se.

Lisboa, 1º–2º–89.

Nicolau:

Recebi a tua carta
E vejo o que me dizes do outro mundo,
Confessas que de ti se não aparta
O teu fado cruel, sempre iracundo.
Nunca a pança por cá tiveste farta.
Mas lá que o teu martyrio é mais profundo,
Lamento, meu amigo, que assim seja,
Mas, dos que estão por cá, não haja inveja.

Dizes que és lampianista logo á entrada
Do céo, e que S. Pedro é teu amigo;
Mas, que por teres cá lingua damnada,
Embirram lá no céu muito comtigo !
Dizes q’ereres voltar á Lísbia amada
P'ra viveres aqui junto co’migo.
Mal sabes tu, meu velho Tolentino,
Quanto fôra isso em ti um desatino !

Isto por cá, não é o que foi d'antes,
E hoje um purgatório ! uma inferneira !
A cidade já chega quasi a Abrantes !
E, por ter muita gente, ha já lazeira !
E abundam de tal forma os meliantes
Dos que sabem metter mãos na algibeira,
Que é preciso um policia, bem armado,
Pra cada cidadão andar guardado.

Isto está tudo torto ! Transformado !
Todos se tratam já por excellencia;
Com ares, cada qual, d'afidalgado,
Soffrem por este mal triste demencia!
Qualquer, p'ra ser ministro ou deputado,
Se julga com saber, e competência !
Todos, mettendo á Pátria gorda espiga,
Só tratam bem da bolsa e ... da barriga !

Pelas ruas, em carros estofados,
Sentados os lacaios, vão gozando I
Emquanto que, em cocheiros transformados,
Os fidalgos os carros vão guiando !
Ha homens já com homens namorados,
Tudo n'uma balburdia, e alto desmando !
Ha-de custar-te a crer! ha até senhoras
Mais homens que mulheres, e doutoras !

E todas, noite e dia, pelas ruas
Navegam, já sosinhas, á vontade,
E aos homens, graçolinhas lá das suas,
Apresentam com toda a liberdade !
E os donos de taes náus, de taes faluas,
Dos naufragios não temem a impiedade,
De forma que os naufrágios, meu amigo,
são tantos ! ! e óra adeus ! chamam-lhe um figo !

As egrejas já estão quasi desertas,
Só ás moscas entregues, e ás baratas,
E quando, aos domingos, são abertas,
Chamam ás que lá vão, tolas, beatas !
Ao passo que mui anchas, mui espertas,
Com mira no casório, as taes fragatas,
Aos cardumes passando alegre vida,
Innundam os theatros, e a Avenida. ( )

Qualquer fedelho, apenas de dez annos.
Já fuma, e joga as cartas e namora;
Se vão, por troça, ao templo taes insanos,
Precisa o enxota-cães pôl-os lá fora;
E assim vão caminhando nos enganos
Da podre educação que o céo deplora;
Depois, já pódes vêr, por taes assômos
Quem póde ser juiz com taes mordomos ! ?

Fazem-se hoje viagens em vapores
Que, voando pela terra e pelos mares,
Vão em sete minutos aos Açores
E em menos d'um minuto a Valladares.
A guerra! Santo Deus! ergue terrores.
Que fazem tiritar os militares!
É tanta, e de tal forma, a artilheria,
Que alcança já d'aqui á Alexandria !

Usa cada soldado uma espingarda
Que dá sete mil tiros por minuto !
E só deixam agora vestir farda
A quem fôr mais membrudo e féro bruto !
E cada general, gordo, bojarda,
No seu officio ou arte, é tão astuto
De forma que, se cá tivermos guerra,
Ninguém fica de pé ! Vae tudo a terra !

Isto por cá, mudou completamente !
Nem tu nada já d'isto conhecias;
As mulheres nem teem cara de gente,
São figuras de gesso ! e muito esguias !
Até mesmo o idioma está diff’rente
De forma que já nada percebias !
E se julgas que minto no que digo,
Eu passo a bem provar-t'o, meu amigo :

Os verbos foram mudados,
Não ficou um só de pé !
São hoje assim consid'rados:
Gritar, é fazer banzé !
Chama-se ao fugir raspar,
Liscar, safar e pisgar,
’Té mesmo passar o pé.

O morrer é arrefecer
É o calar, engulir.
Namorar, é padecer,
Chama-se ao comer murquir !
Espreitar, diz-se cocar,
Bater, zurzir e zupar,
Olhar p’ra dentro, é dormir !

Chama-sa ao roubar, arranjo !
Ou inglezar e chiprar !
Não sei porque desarranjo
É fazer o passeiar;
O ignorante, é ser cego !
Empenhar, é pôr no prego !
O tremer, é tiritar.

Ninguém falla como d'antes;
Tudo assim, tudo mudou !
'Té mesmo a palha d' Abrantes
De letria o nome achou !
Nem mesmo julgam ser erro
A um cão chamarem-lhe pêrro,
E os calotes serem cães,
E o caloteiro, cãoseiro,
E chelpa qualquer dinheiro,
E cheta os próprios vintens.

Amantes, são padecentes !
A officina, atelier !
Mestres d'escolas, são lentes !
É a carruagem, coupé !
Pernas magras, são varetas !
Botas tortas, são palhetas !
São os narizes, fungões !
A desordem, zaragata!
E cara, figura ou lata !
E as mentiras, são palões !

Chama-se á cabeça, pinha !
Chama-se ao janota, pão !
Ter azar, é ter gallinha !
Mentir, é ser intrujão !
O ser máu, é ser má rolha !
Não ter juizo, é ter bolha !
Chamam ao vinho briól !
E toucado á bebedeira,
Carraspana, e capoteira,
E á barriga, pança e fól !

Sâo as creadas, sopeiras !
Ser gentil, é ser liró !
Aos olhos, chamam setteiras !
Ser limpo, é quite de pó !
N'um jardim um charco é lago !
Dinheiro em geral, é bago!
Um puding, é um poré !
Mulher esguia é fanéca!
Cavallo magro, é pilléca !
Chama-se ao suor chulé !

Jogar, é fazer batota !
É café o botequim !
Perder, é levar derrota !
É um barulho, chinfrim !
O sobscripto, enveloppe!
Chamam-se as valsas galope !
A um ramalhete, bouquet !
E hoteis ás hospedarias !
As medianeiras sâo tias !
O ter gosto, é ter filé !

A vara d'outr’ora, é metro!
Decilitro o quarteirão !
Trocou-se em bandurra o plectro,
Bom cavalleiro, é calção !
Chama-se ás libras piratas !
Pômo de terra ás batatas !
Ao valentão Fcrra-Braz!
Ao municipal, um guita !
A mulher alta, guarita!
Ao homem alto, lambaz !

É fauteuil, uma cadeira!
É sofá, um canapé !
É pandega, a brincadeira !
Ao povo chamam-lhe Zé !
Chama-se instituto, a escola !
Banza e bandurra, a viola!
As gazetas, são jornaes !
Ser peralta, é ser penetra !
Edecetra, e édecetra,
E assim muitas coisas mais.

Já vês d'esta maneira, meu amigo,
Que vinhas tu fazer cá por Lisboa?!
Teus versos não valiam hoje um figo,
Nem rimas encontravas p'ra uma lôa;
Sem saberes fallar, feito um mendigo,
Sem te intender sequer, uma pessoa,
Ai ! amigo, não venhas, tem juizo,
Não troques pelo inferno o teu p'raizo.



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Atelierbouquetcanapécoupéenveloppefauteuil; e jornal e  pomo de terra, já na altura com formas aportuguesadas. Só pomo de terra desapareceu completamente e provavelmente fauteuil, que os dicionários de português ainda registam como galicismo para «poltrona», mas que nunca me lembro de ter ouvido. Filé é provavelmente também um empréstimo ao francês, mas não consigo atestar nesta língua o significado que Macário aqui descreve, nem o de «empenho», que registam os dicionários. 

2 comentários:

António Ladrilhador disse...

Se lhe interessar ler alguma coisa sobre a deturpação da língua portuguesa devida ao crescente facilitismo, convido-o a visitar os textos que afixei no Mosaicos em Português, cujo índice poderá consultar em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/p/indice-da-seccao-lingua-portuguesa.html
Votos de um excelente fim-de-semana.

V. M. Lucas Lindegaard disse...

Caro António Ladrilhador, muito obrigado pelo link para o Mosaicos em Português.

Tratei aqui na Travessa algumas das questões que aborda no Mosaicos, nomeadamente a oposição de por que e porque na escrita (aqui) e os particípios duplos (aqui). Também eu sou adepto do «por que», mas – como em tantas outras coisas! – escrevo segundo a norma do português europeu, sem mais. Quanto ao chamado se sujeito vs se apassivante, a questão é altamente complexa, até porque a chamada diátese ou voz verbal não se pode de facto reduzir a uma oposição passiva vs ativa e, em muitos casos, não se trata do que é mais correto, mas sim do que de facto se diz ao escolher uma ou outra forma. É questão que merece uma longa conversa...

Por fim, quero só notar que a ideia da decadência da língua é tão antiga como a reflexão sobre a língua e, por isso, seguramente tão antiga como a própria língua, mas não conheço evidência empírica sólida que a sustente. Pelo contrário, é bastante consensual entre linguistas que todas as línguas com um número suficiente de falantes nativos mantêm sempre um mesmo grau de complexidade e riqueza em todas as suas fases e em todas as suas variantes. Também isto é motivo para outra longa conversa...