09/04/22

Politicamente correto, mais uma vez

 

Permitam-me repisar: correto é um termo de aprovação e politicamente correto é, por isso, aquilo que cada indivíduo ou cada comunidade na sua maioria considera politicamente correto, de acordo com os seus princípios políticos (isto é, os princípios éticos que a devem reger). É uma categoria forçosamente variável, de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade, de uns tempos para os outros. Todas as leituras «referenciais» da expressão, ou seja, referindo um pretenso corpus definido e invariável de princípios e regras, revela apenas uma incompreensão ou — mais provavelmente! — uma posição ideológica.
Em 1786, escrevia Joseph Townsend no seu tratado A Dissertation on the Poor Laws, by a Well-wisher to Mankind («Dissertação sobre as Leis dos Pobres, por alguém que quer bem à Humanidade», traduzo eu): 
Os pobres sabem pouco dos motivos que levam as classes mais altas à ação: orgulho, honra e ambição. Em geral, só a fome pode estimulá-los e incitá-los a trabalhar; as nossas leis, porém, dizem que eles nunca deverão passar fome. As leis, há que o admitir, também dizem que eles estão obrigados a trabalhar. Mas a obrigatoriedade legal traz sempre muitos problemas, violência e barulho; cria má vontade e não pode nunca produzir um serviço bom e aceitável; ao passo que a fome não só é uma pressão pacífica, silenciosa e incessante, como também, sendo o motivo mais natural para a indústria e o trabalho, suscita os maiores esforços; e, quando satisfeita com a generosidade de outrem, cria uma base duradoura e segura para a boa vontade e a gratidão.
Não tenho razão nenhuma para acreditar que isto não era politicamente correto na época — pelo menos para uma grande parte das pessoas que sabiam ler o panfleto. Ainda bem que hoje já não o seria para a grande maioria (embora haja com certeza ainda quem pense assim).

07/04/22

Dupla negativa

 

Pela alminha de quem vos seja mais querido, não escrevam frases negativas sem negação antes do verbo! 
Surgiu agora uma moda, talvez inspirada na estrutura das línguas germânicas (inglês?), de não pôr negativa antes do verbo quando há um elemento negativo depois, justificando-se essa prática com a pretensa regra «lógica» de que uma negativa de uma negativa é uma positiva. Assim, por exemplo, dever-se-ia escrever 
Eu vi nada 
porque, se se escrever 
Eu não vi nada 
está-se a dizer que se viu alguma coisa. Francamente... 
Em português — e nas outras línguas latinas que conheço, exceto em francês oral, por causa da supressão do advérbio ne na fala — a regra é que, numa frase negativa tem de haver sempre uma negativa antes do verbo. «Nada vi» ou «Não vi nada», está bem; *«Vi nada», não! E é igual em espanhol, «No he visto nada», em italiano, «Non ho visto niente», e em francês escrito, «Je n’ai rien vu». Nas línguas latinas, não há nenhuma distinção do tipo da que existe, por exemplo, entre nothing e anything em inglês: numa frase negativa, nada é ambas as coisas. 
Procurem lá onde quiserem, nos textos todos da língua desde sempre, em todos os escritores que considerem modelos de bem escrever, a ver se encontram abonações dessa estranha estrutura que agora se começa a ver por aí. 
«Vi nada» é uma frase poética que diz que se alcançou a mais alta e perfeita iluminação. Ou então é um erro de português.

04/04/22

Cristal Limiñana (uma história com um bocadinho de publicidade)

A 28 de fevereiro, cheguei a Marselha com duas colegas minhas para lá fazer um estágio de um mês. A organização que organizava o nosso estágio tinha-nos também arranjado alojamento: um apartamento no Boulevard Jeanne d’Arc. Quando chegámos, surpreendeu-me uma loja mesmo ao lado do nosso prédio, de uma fábrica de runs e anisetes chamada Cristal Limiñanas. É que, mais versado que sou em música que em bebidas marselhesas, Limiñanas era para mim apenas um nome de um duo de rock. Les Limiñanas são um casal de Perpignan, Lionel e Maria Limiñana e o segundo dos seus nove álbuns chama-se Crystal Anis. Uma estranha coincidência! Ou então não… 

  
Descobri que a fábrica Cristal Limiñanas é conhecida sobretudo pelo pastis Un Marseillais, que eu não conhecia. Como já disse aqui uma vez, sempre bebi a mesma marca de pastis (até começar a fazê-lo eu próprio), sem nunca me ter dado para explorar a grande variedade que há. Ora isto não podia continuar, evidentemente. O Un Marseillais, pelo menos, tinha de experimentar. 
De maneira que, na véspera de me vir embora, fui à loja comprar uma garrafa de Un Marseillais e talvez mais alguma que na loja me pudesse interessar. Quando contei à senhora que me atendeu que tinha achado curioso aquela marca de anisete ter o mesmo nome que uma banda de rock que eu conhecia e que, curiosamente, tinha um álbum chamado Crystal Anis, ela disse-me: «Ah, claro, os nossos primos! Veja aqui!» e apontou, na parede, um cartaz da tournée do álbum. «Bem vê, somos a única família com este nome em França. É um nome que vem de uma pequena aldeia espanhola, ali da zona de Alicante.» 

P.S.: A senhora era Maristella Vasserot, a dona da fábrica. A história da empresa, podem ouvi-la aqui, por exemplo, ou lê-la aqui. É um bocadinho de publicidade, eu sei, mas já a história acima também é um bocado publicitária, de maneira que…