06/07/22

Matrículas de carros

 

Falei aqui há pouco tempo de o alfabeto latino ser o mais usado no mundo e porquê — e de como, por causa disso, muitas vezes parece que se considera o alfabeto latino mais «normal». A questão das matrículas dos carros, que referi de passagem, é, este respeito, bastante curiosa. 

A Convenção sobre Trânsito Rodoviário está em vigor desde Março de 1952. Esta convenção foi inicialmente assinada em Genebra por 20 países, em 1949, e foi posteriormente revista em Viena de Áustria em 1968 e, desde a sua primeira versão, ratificada por mais 83 países. É uma convenção claramente «latinista», se se pode dizer assim. O Anexo n.º 2, sobre «Número de matrícula dos automóveis e seus reboques em circulação internacional», diz no seu ponto 1: 
«O número de matrícula […] deve ser composto quer por numerais, quer por numerais e letras. Os numerais devem ser algarismos e as letras em caracteres latinos maiúsculos. Podem, no entanto, ser utilizados outros numerais ou caracteres, caso em que o número de matrícula deve ser repetido em algarismos e caracteres latinos maiúsculos.» 
Compreende-se que haja necessidade de standardização e compreende-se a escolha do alfabeto mais usado. Mas deve ser estranho, no mínimo, ter de usar um alfabeto outro que não o seu — ou, em última análise, um alfabeto que não se conhece. Bom, russos e búlgaros resolvem o problema de forma airosa: usam nas matrículas apenas as 12 letras do alfabeto cirílico que têm a mesma forma que letras do alfabeto latino, embora não representem forçosamente sons semelhantes: А, В, Е, К, М, Н, О, Р, С, Т, У e Х*.
Uma matrícula da Arábia Saudita, com caracteres árabes e latinos.
Como os caracteres correspondentes se sucedem na mesma ordem,
mas a escrita árabe se lê da direita para a esquerda, presumo que,
quando se diz a matrícula em árabe, se diga JNT em vez de TNJ…
(Imagem: Wikimedia Commons, 
daqui)
Agora, em muitos países em que não se usa o alfabeto latino, as matrículas têm apenas caracteres latinos e não os caracteres locais mais a sua transcrição em caracteres latinos, como a convenção permite. Na Geórgia, por exemplo, nunca há caracteres georgianos. Agora, o que é que isto implica para um georgiano que não tenha aprendidos línguas estrangeiras — ou que, quando muito, só tenha aprendido russo, como é o caso de muitos deles? A questão não é só ser obrigado a usar caracteres estrangeiros**, é também ter de usar caracteres desconhecidos. Não sei como resolvem este problema. Se calhar, quando compram um carro, decoram as letras da matrícula e a que sons elas correspondem. Mas imaginem uma conversa***
− რა არის თქვენი მანქანის სარეგისტრაციო ნომერი? (Qual é a matrícula do seu carro?) 
− ეე ოთხას სამოცდასამი ვვ (É, é, quatrocentos e setenta e três, vê, vê.) 
− და ამას როგორ წერ (E como é que isso se escreve?) 
E como farão para escrever no computador as matrículas, se não usam o nosso teclado? Têm de mudar de teclado (não o físico, entenda-se) e decorar no seu teclado que letras correspondem às do alfabeto latino que entram na matrícula do carro? Por exemplo, que EE-473-VV corresponde a ეე-473- ვვ… Deve ser assim. Ou haverá tendência para se usar cada vez mais teclados «internacionais» georgianos e latinos? Devia ter perguntado isto quando lá estive e não perguntei. Fica para a próxima vez. Ou talvez algum dos meus leitores me saiba responder. 

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* Muitas destas letras representam sons diferentes nas várias línguas escritas com alfabeto latino, mas H nunca representa [n], nem P representa [r], nem Y representa [u], como acontece quando usadas num alfabeto cirílico.
** O que também é uma questão interessante, em termos identitários: como reagiríamos nós se tivéssemos de usar matrículas com caracteres não latinos?
**A tradução para georgiano foi feita com Google translator e pode estar incorreta, mas isso é irrelevante para o que aqui está em discussão.

05/07/22

Funeral em vida

Uma amiga contou-me que o seu pai e os amigos dele organizaram funerais em vida. É uma grande ideia. Por muito que o funeral seja um dos dias mais importantes da vida de uma pessoa, é celebração a que essa pessoa não assiste — não tem possibilidade de se comover com os elogios fúnebres que os amigos lhe fazem, nem de se rir com as muitas histórias engraçadas que dela recordam nessa ocasião. 

Estou a pensar em organizar o meu funeral em vida um dia destes. Depois, se alguns dos meus convidados acharem por bem dar continuidade à minha iniciativa organizando os seus próprios funerais em vida, teremos finalmente possibilidade de retribuir uns aos outros a presença no nosso funeral — uma coisa que, sem estes funerais em vida, é muito difícil de fazer...