Diz a canção de Caetano Veloso (há canções ricas em filosofia, mas só poucas) que a plenitude e a morte coincidem forçosamente um dia*. Jorge Luis Borges escreveu em 1985 que, «no instante que antecede a morte», a sorte nos libertará «do triste hábito de ser alguém e do peso do universo»**. Escrevi em jovem (onde terei posto isso?) que era bem possível que o nirvana budista não fosse, afinal, senão a morte***: quando se paga com a morte o pecado de ser um, voltamos a ser apenas parte de tudo e atingimos, assim, a perfeição.
É uma ideia que me persegue desde rapaz. Uma maneira de dar à morte algum sentido positivo, será?, de embelezar o maior de todos os pesadelos… É tentador pensar que sou autor de uma ideia igual (?) à de poetas que admiro, mas é bem provável, como me hei de lembrar?, que estivesse apenas a repetir o que deles — ou de outra(s) pessoa(s) — tivesse lido ou ouvido...Sobre a canção:
Ignorante que sou das coisas da música popular brasileira, sempre pensei que o «Nº 2» de “Janelas Abertas Nº 2” indicasse a versão da canção (muitas vezes, as obras passam por várias versões que os autores numeram), mas descobri agora que não é assim: remete antes para “Janelas Abertas”, uma canção de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes gravada em 1958 por Elizete Cardoso e em 1959 por Sílvia Telles. Caetano Veloso «cita» o início da canção («Sim / Eu poderia…» ) e o início da última estrofe («Mas / Quero as janelas abrir…») dessa “Janelas Abertas” «Nº 1». Também se pode estabelecer uma relação entre «Eu poderia morrer / E me serenizar» da letra de Vinicius de Moraes e «Até que a plenitude e morte e coincidissem um dia» da letra de Caetano Veloso.A versão original de “Janelas abertas No. 2” é esta, do álbum A tua presença, de Maria Bethânia (ou Maria Bethânia Viana Telles Veloso, como vem na capa do disco), 1971
________________
* “Janelas Abertas Nº 2”: «Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro / Percorrer correndo, corredores em silêncio / Perder as paredes aparentes do edifício / Penetrar no labirinto / Um labirinto de labirintos dentro do apartamento / Sim, eu poderia procurar por dentro a casa / Cruzar uma por uma as sete portas, sete moradas / Na sala receber o beijo frio em minha boca / Beijo de uma deusa morta / Deus morto, fêmea de língua gelada, língua gelada como nada / Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília / Em cada um matar um membro da família / Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia / O que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas / Pra que entrem todos os insetos»** “Tríada”, in Los conjurados, Alianza Editorial, 1985: «El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla. / El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha. / El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.»
*** Se analisarmos a palavra nirvana, ela significa originalmente «apagamento, extinção», do sânscrito ni-, nir-, prefixo de cessação, + va- «soprar». A raiz pré-indo-europeia de va- é *we-, «soprar», que chega ao português na palavra vento.