07/12/22

Da pouca fiabilidade da memória e mais

Diz a canção de Caetano Veloso (há canções ricas em filosofia, mas só poucas) que a plenitude e a morte coincidem forçosamente um dia*. Jorge Luis Borges escreveu em 1985 que, «no instante que antecede a morte», a sorte nos libertará «do triste hábito de ser alguém e do peso do universo»**. Escrevi em jovem (onde terei posto isso?) que era bem possível que o nirvana budista não fosse, afinal, senão a morte***: quando se paga com a morte o pecado de ser um, voltamos a ser apenas parte de tudo e atingimos, assim, a perfeição.

É uma ideia que me persegue desde rapaz. Uma maneira de dar à morte algum sentido positivo, será?, de embelezar o maior de todos os pesadelos… É tentador pensar que sou autor de uma ideia igual (?) à de poetas que admiro, mas é bem provável, como me hei de lembrar?, que estivesse apenas a repetir o que deles — ou de outra(s) pessoa(s) — tivesse lido ou ouvido...

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Sobre a canção:

Ignorante que sou das coisas da música popular brasileira, sempre pensei que o «Nº 2» de “Janelas Abertas Nº 2” indicasse a versão da canção (muitas vezes, as obras passam por várias versões que os autores numeram), mas descobri agora que não é assim: remete antes para “Janelas Abertas”, uma canção de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes gravada em 1958 por Elizete Cardoso e em 1959 por Sílvia Telles. Caetano Veloso «cita» o início da canção («Sim / Eu poderia…» ) e o início da última estrofe («Mas / Quero as janelas abrir…») dessa “Janelas Abertas” «Nº 1». Também se pode estabelecer uma relação entre «Eu poderia morrer / E me serenizar» da letra de Vinicius de Moraes e «Até que a plenitude e morte e coincidissem um dia» da letra de Caetano Veloso.

A versão original de “Janelas abertas No. 2” é esta, do álbum A tua presença, de Maria Bethânia (ou Maria Bethânia Viana Telles Veloso, como vem na capa do disco), 1971

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* “Janelas Abertas Nº 2”: «Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro / Percorrer correndo, corredores em silêncio / Perder as paredes aparentes do edifício / Penetrar no labirinto / Um labirinto de labirintos dentro do apartamento / Sim, eu poderia procurar por dentro a casa / Cruzar uma por uma as sete portas, sete moradas / Na sala receber o beijo frio em minha boca / Beijo de uma deusa morta / Deus morto, fêmea de língua gelada, língua gelada como nada / Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília / Em cada um matar um membro da família / Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia / O que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas / Pra que entrem todos os insetos»

** “Tríada”, in Los conjurados, Alianza Editorial, 1985: «El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla. / El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha. / El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.»

*** Se analisarmos a palavra nirvana, ela significa originalmente «apagamento, extinção», do sânscrito ni-, nir-, prefixo de cessação, + va- «soprar». A raiz pré-indo-europeia de va- é *we-, «soprar», que chega ao português na palavra vento.



Sopa de couve e salsicha

 

Aqui está um prato (ou a sua ideia de base, seja, que eu introduzo sempre as minhas variações...) que creio que se encontra desde a Alsácia ao sul da Jutlândia. As salsichas que são o seu ingrediente principal, pelo menos, existem em toda essa região. Mas enfim, assentemos que é alemão, pronto, para lhe dar uma nacionalidade. É uma sopa muito boa e muito, muito fácil de fazer. Se não encontrarem a salsicha que eu uso (kohlwurst), usem uma qualquer que aguente meia horinha de cozedura sem se desfazer. Se calhar, também dá com chouriço, é questão de experimentar...

Pica-se cebola, põe-se a refogar com azeite, junta-se as salsichas cortadas às rodelas e deixa-se refogar mais um bocado. Junta-se cenoura aos bocados e batata aos cubos pequenos e deixa-se ficar ali a estufar. Cuidado, que a batata pega com facilidade, é preciso ir mexendo sempre. Quando a batata estiver meio cozida, deita-se repolho aos bocados e continua a estufar-se e a mexer. Em estando tudo cozido, salpica-se com farinha, mexe-se bem, e cobre-se com leite. Fresco, leite sempre fresco, nada de UHT, que isso não presta. Depois deixa-se ficar tudo a ferver um bocado e come-se! 

Variações: Pode usar-se nata em vez de leite, mas, nesse caso, ponho também uma parte de água, porque senão é muito gordo para o meu gosto. Também se pode usar outras verduras, consoante o que se tenha à mão, ou acrescentar outras. Alho francês fica sempre bem. Couve lombarda em vez de repolho também. E o mais que vos passe pela cabeça. Também se pode pôr queijo ralado na sopa, ao servir. Eu acho que fica bem um queijo tipo emmental ou gruyère, mas talvez vocês tenham outros gostos. 

Outra sopa muito boa, parecida com esta mas sem as salsichas, é a sopa de chalet suíça, que eu aprendi com um patrão que tive, que era mesmo de Gruyère. Mas eles não engrossam a sopa com farinha. Às vezes, põem é cotovelinhos para fazer o entulho. Agora, nessa é obrigatório o queijo ralado ou picado (gruyère, de preferência) no prato em que se serve a sopa.

[As fotografias são antigas. Esqueci-me, pelos vistos, de tirar uma foto da sopa depois de pronta, de maneira que tive de ir arranjar na Internet uma que me pareceu dar uma boa ideia de como fica a minha sopa...]

Conforto térmico [Crónicas de Svenddborg #45]

 

Juha Uitto: Snow heels, 13.2.14 Creative Commons, daqui

Verão é uma palavra quente e inverno uma palavra fria. Pode parecer uma efusão lírica moderna, daquelas em que se dá uma materialidade inflada à palavra «palavra»; mas não é, é apenas uma constatação simples: se, na frase anterior, entendermos palavra como embrulho de um conceito, parece que basta saber-se que é verão para se ter calor e saber-se que é inverno para se ter frio.

Diz-se que mau tempo não existe, só há roupa inapropriada. É certo, mas isso não significa que é só para o mau tempo que se deve ter roupa apropriada. E há muito quem se vista conforme a data e não conforme o tempo; quem, independentemente da temperatura que faça, ande de manga curta e calções no verão e durma de meias e roupão por cima do pijama no inverno.

Ora o verão é, aqui na Dinamarca, a estação em que há mais possibilidade de passar frio, porque as noites podem ser fresquinhas e estão amiúde desligados os aquecimentos; já que, no inverno, as casas têm sempre uma temperatura entre os 20 ºC e os 25 ºC. Por isso é que eu digo que o ideal para mim era poder passar o verão em Portugal e o inverno da Dinamarca. Mas acho que, aqui, são só as pessoas mais idosas que, por estes tempos, se agasalham dentro de casa. Deve ser algo atávico, digamos assim, que ficou do tempo em que o conforto térmico na Dinamarca era muito menor do que é agora e no inverno se passava tanto frio como em Portugal — ou mais…

Este ano, cheio de boas intenções (ok, e um bocadinho impressionados com os novos preços da energia…) decidimos que podíamos ter a casa só a 19 ºC. Mas era uma promessa de bêbedo, como se costuma dizer — ninguém quer passar um inverno assim.

Tomer Hanuka, capa de The New Yorker, 10.2.2014, pormenor