07/06/23

De hinos nacionais... e transnacionais

Dos hinos nacionais que conheço, não me lembro de nenhum que me agrade mesmo – nem melodias nem letras... Mas enfim, também conheço poucos. Não deixa de ser curioso, porém, que não haja mais hinos nacionais que sejam canções «tradicionais» ou «folclóricas». Parece que ficaria bem à romântica ideia de nação um símbolo que romanticamente definisse «a alma de um povo», uma capacidade que — muito romanticamente também — se atribui muitas vezes à música «tradicional» ou «folclórica».

«Tradicional» ou «folclórico», quando se refere a autoria (ou ausência dela, seja), significa apenas que não se sabe quem é o autor. Muitas vezes, a canção de autor desconhecido assim referida sofreu várias mutações, ou seja, foi reescrita por várias pessoas anónimas ao longo do tempo, e tem, muitas vezes, várias versões, todas de autor desconhecido. Quando olhamos para a lista dos hinos nacionais, presentes ou passados, e dos seus autores, só os da Eslováquia (música), da Suécia (música) e de Montenegro (letra e música) são «folclóricos»*.

Por mim, proponho a canção tradicional «Segadinhas» para hino português: presta-se a ser cantada em coro por muita gente, até com arranjos sofisticados, é rica em lirismo, que muitos consideram uma qualidade nacional, com uma mensagem bem mais razoável e mais positiva que o apelo bélico e suicida a marchar contra canhões, e inclui o termo larilolé, que é dos mais portugueses que há... Mas receio que não haja muito gente a concordar comigo.

Agora, um caso curioso é «Land of the Rising Sun», o hino da República do Biafra, autoproclamada em 1967 e que durou só até 1970. A letra é de Charles Okereke e a melodia é do hino «Finlândia«, de Jean Sibelius, extraído do poema sinfónico do mesmo nome e transformado em canção com duas letras diferentes, a primeira de Wäinö Sola em 1937 e a segunda de Veikko Antero Koskenniemi em 1941 (além de outras letras noutras línguas). Ora, o hino «Finlândia» não só é uma obra nacionalista, como tem sido muitas vezes proposto para hino nacional da Finlândia, sem que isso se tenha concretizado. Só no Biafra é que «Finlândia» finalmente cumpriu, durante três anos apenas, a sua vocação de hino nacional.

Para terminar, deixo-vos o poema sinfónico Finlandia, de Jean Sibelius, numa excelente versão, por tal sinal muito finlandesa: a Orquestra Filarmónica de Helsínquia conduzida por Leif Segerstam. Não é propriamente um hino nacional, mas é uma obra referida no texto e é mais bonita que os hinos nacionais que conheço. Para mim, claro.


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* O hino do Sara Ocidental também é de compositor e letrista desconhecido, mas não me soa nada a tradicional sarauí. A música do hino «God Save The King», que é usada também no hino nacional do Listenstaine, também é de autor desconhecido e decerto suficientemente antiga para poder ser considerada «tradicional»...

05/06/23

[Frango de] Fricassé


Depois de vários meses sem aqui pôr nada, proponho-vos uma receita de frango. Não estejam à espera de invenção ou de inspirada variação: é uma receita clássica que vos trago — tão clássica que até já deu lugar a variações regionais que se tornaram clássicas elas próprias. E não vos vou dizer que este é que é o «verdadeiro» fricassé, ou o fricassé «original», porque isso não há nem nunca houve, mas é um fricassé relativamente canónico, se se pode dizer assim. E muito saboroso!

Mas porque me fui eu lembrar de fricassé? Bom, num grupo de amigos, falou-se um dia destes desse prato e de várias maneiras de o fazer. E então, por causa disso, fui ver um bocadinho a história da palavra e daquilo que ela refere, e fui ver o que diziam os clássicos. E fiquei cheio de vontade de comer um fricassé, claro está, que já não comia há muito tempo. De maneira que fiz um e estava bem bom.

O verbo francês fricasser, de origem discutida (de frire + casser ou de fric- + o sufixo -asser?) está atestado já no séc. XV. O significado parece estar sempre ligado a carne cortada em pedaços cozinhada no seu próprio caldo. A carne que mais se usa para fricassé é a de galinha, mas o mesmo processo também se pode usar para outras carnes e até mariscos. Para Escoffier, no seu clássico Guia Culinário de 1903, a diferença entre um fricassé e uma blanquette é que, nesta, a carne é só cozida no caldo, ao passo que, num fricassé, a carne é primeiro salteada em manteiga e só depois molhada com um caldo branco previamente preparado. Na receita de Escoffier, como em várias outras receitas de «Fricassé à moda antiga», há um duplo espessamento do molho: a carne é primeiro polvilhada de farinha antes de ser salteada, o que forçosamente contribui para ligar o molho, mas este é também ligado no fim com gemas de ovos e nata.

As variações sobre o prato são muitas por esse mundo fora, mas, na versão mais comum em Portugal, omitem-se as natas, os cogumelos e a farinha — liga-se só com gemas de ovos, a que se junta sumo de limão e salsa picada.

O melhor é uma pessoa adaptar as receitas ao que tem à mão e à inspiração do momento, Desta vez, o meu fricassé foi assim:

Primeiro, desossei o frango, só para lhe tirar a carcaça. A carcaça não fica bem num prato assim, além de que, se uma pessoa não tiver caldo de galinha já feito e não quiser usar caldos desses liofilizados que se compram em cubos, precisa de ossos para fazer a canja, não é verdade? Cortei a carne em bocados pequenos, com as pernas e as asas cortadas ao meio e os peitos divididos em quatro.

Numa panela, pus a carcaça do franco e a ponta das asas a cozer com uma cebola, uma cenoura, umas ramas de aipo e de alho francês e um ramo de cheiros (tomilho, dois tipos de salva e alecrim, que é o que tenho agora no quintal).

Pus os bocados de frango a dourar numa frigideira com cebola e alho previamente refogados. Ao fim de pouco tempo, retirei os bocados de carne branca, para não ficarem secos demais. Depois de cozinhados mais uns minutos as asas e pernas, tirei-lhes a pele: é boa para dar sabor, mas não a queria no prato final. Pernas e asas voltaram à frigideira, juntei-lhe uns cogumelos cortados em lâminas. Uns minutinhos depois, cobri tudo com a canja, que entretanto tinha passado num passador. Juntei-lhe um pouco de nata. Deixei cozer neste molho mais alguns minutos e juntei-lhe então a carne branca. Quando dei por terminada a cozedura, já fora do lume mas ainda muito quente, juntei-lhe duas gemas de ovos, que tinha batido com sumo de limão e salsa picada. Voilà ! 

Ah, já agora: a receita de Escoffier inclui sumo de limão. De facto, o sumo de limão só é diretamente mencionado na receita de blanquette de vitela, mas na receita de fricassé diz-se que o molho se faz da mesma forma que o da blanquette.