16/07/24

Cantigas de rima esdrúxula e encontros de consoantes


1. A valsa “Drama de Angélica (Canto Tétrico)” foi composta por Manoel Gabriel Manhães Barreto e Lubiti, e gravada originalmente pelo Grupo do Calundas em 1931. Ei-la aqui na versão de Alvarenga e Ranchinho, de 1942.

A letra autodescreve-se como «poesia ética em forma esdrúxula, / feita sem métrica com rima rápida». Na realidade, é ao contrário: métrica até tem, apenas com algumas irregularidades, rima é que não. Se tivermos em conta que o fim da canção é descrito na própria letra como um dístico, a forma da letra é esta que ponho aqui em baixo, com 48 decassílabos acentuados na quarta sílaba. No entanto, se não aparecesse a palavra «dístico» a introduzir os últimos versos, e tendo em conta que o texto se quer «em forma esdrúxula», podia considerar-se que é de facto um texto em 96 versos de quatro sílabas, todos esdrúxulos — o que as pausas na melodia confirmam —, já que as palavras acentuadas na quarta sílaba de cada verso são todas esdrúxulas, como as que surgem no fim dos decassílabos. Ou quase todas esdrúxulas: perplexo e convexo são graves e não deviam, portanto, aparecer na letra, se se quiser levar mesmo a sério a tal condicionante dos versos esdrúxulos.

Ouve meu cântico, quase sem ritmo
Que a voz de um tísico, magro esquelético
Poesia ética em forma esdrúxula
Feita sem métrica com rima rápida
Amei Angélica, mulher anêmica
De cores pálidas e gestos tímidos
Era maligna e tinha ímpetos
De fazer cócegas no meu esôfago

Em noite frígida, fomos ao Lírico
Ouvir um músico, pianista célebre
Soprava o zéfiro, ventinho úmido
Então Angélica ficou asmática
Fomos a um médico de muita clínica
Com muita prática e preço módico
Depois do inquérito, descobre o clínico
O mal atávico, mal sifilítico.

Mandou-me célere comprar noz vômica E ácido cítrico para o seu fígado
O farmacêutico, mocinho estúpido,
Errou na fórmula, fez despropósito
Não tendo escrúpulo, deu-me sem rótulo
Ácido fênico e ácido prússico
Corri mui lépido, mais de um quilômetro
Num bonde elétrico de força múltipla

O dia cálido deixou-me tépido
Achei Angélica, já toda trêmula
A terapêutica dose alopática
Lhe dei em xícara de ferro ágate
Tomou num fôlego triste e bucólica
Esta estrambólica droga fatídica
Caiu no esôfago, deixou-a lívida
Dando-lhe cólica e morte trágica

O pai de Angélica, chefe do tráfego,
Homem carnívoro, ficou perplexo
Por ser estrábico, usava óculos
Um vidro côncavo, e o outro convexo
Morreu Angélica de um modo lúgubre
Moléstia crônica levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia todos os médicos
Foram unânimes no diagnóstico

Fiz-lhe um sarcófago assaz artístico
Todo de mármore da cor do ébano
E sobre o túmulo uma estatística
Coisa metódica como Os Lusíadas
E numa lápide paralelepípedo
Pus esse dístico terno e simbólico
«Cá jaz Angélica, moça hiperbólica
Beleza helênica, morreu de cólica»

Enfim, uma brincadeira com versos esdrúxulos, que são muito raros em letras de canções. Alguém comenta no YouTube que, além desta, a única canção que conhece com versos esdrúxulos é “Construção”, de Chico Buarque, uma obra-prima, digo eu, da canção em língua portuguesa — e da canção em geral. (Não vou aqui transcrever a letra da canção, que é muito conhecida e tem pouco a ver, no tom e no conteúdo, com as outras cantigas satíricas que aqui trato, mas podem lê-la aqui. As três últimas estrofes sem versos esdrúxulos são de outrs composição, “Deus lhe pague”, que se segue a “Construção” sem intervalo.)

De facto, se falarmos de canções em português com todos os versos terminados em palavras esdrúxulas, também não me lembro de mais nenhuma. Mas conheço outra, do início dos anos setenta, em que as palavras finais dos versos são quase todas esdrúxulas: “Homem Tétrico Morreu em Pé Num Carro Eléctrico”, do cantautor português Daniel. Não deixa de ser curioso que esta canção de Daniel tenha também no título a palavra tétrico. Será que Daniel conhecia a valsa de Manhães Barreto e foi inspirado por ela na criação da sua canção, que também tem um espírito satírico e também termina em morte? Há uma diferença fundamental, porém, entre a rima das duas canções: Daniel diverte-se a criar palavras, esdruxulizando palavras não esdrúxulas: na canção aparecem amarélico, sentádico, funerárico e qualquérico, que, embora não existam, toda a gente percebe, e um estranho fétrico, que eu não conheço e que não consigo encontrar nos dicionários. 

Entrou num carro elétrico um homem tétrico
E estava muito cheio o carro elétrico
Ficou de pé, cansado e com ar patético
Enquanto o carro avança e solavanca, frenético
Agarrado ao banco de metal amarélico
Suportando empurrões do jeito mais histérico
Dizendo palavrões ia o homem tétrico
Que não gramava nada andar de carro elétrico
Avança e solavanca, segue o carro elétrico

A tarde era amarela como o homem tétrico
O carro era amarelo como o homem tétrico
Deu-lhe uma pisadela um psicadélico (lá está o pessicadélico)
E ele fica muito muito amarélico
Deu um grito no carro deixando patético
O povo que ia agarrado ao carro fético
E cai no chão de pau nunca mais sendo cético
Avança e solavanca, para o carro elétrico E a tarde continua muito amarélica

O polícia cala o apito metálico
E sai p’la porta fora o corpo do homem tétrico
Que morreu em pé num carro elétrico
Não havia lugar para ir sentádico
Naquele carro doido que ia armado em sádico
E chega o carro negro do funerárico

E, mesmo assim, a tarde continua muito amarélica
O polícia toca o apito metálico
E numa casa pobre há um grito histérico
E na necrologia, num jornal qualquérico,
Anuncia-se a morte de um qualquer Américo
Que morreu em pé num carro elétrico
Não havia lugar para ir sentádico
Naquele carro doido que ia armado em sádico
Que não andava a gás, porque era elétrico

Companhia nem enlutou o homem tétrico
Que gramou meio século mulher de choro histérico
E só teve dinheiro para andar de elétrico
Que de tanto andar ficou cadavérico
Pois negaram-lhe sempre um salário módico
Por isso só andou no carro fétrico

Mas graças a Deus, ele já não é tétrico
Nem mais terá de ouvir o lamento histérico
Da sua Alzira com hálito elétrico

Mas não há três sem quatro, e há outra canção que é preciso aqui referir. Daniel também pode ter conhecido uma mazurca de Violeta Parra, a “Mazúrquica Modérnica”,  em que todas as rimas — esdrúxulas! — são, como o título já indicia, palavras criadas pelo mesmo processo com que Daniel cria amarélico, sentádico e qualquérico: acrescentar um pseudo-sufixo ico a palavras graves e agudas, esdruxulizando-as. A canção tem também um claro tom satírico, mas o conteúdo é fortemente político. Bom, talvez se possa também falar de um tom político na canção de Daniel, mas num sentido de uma crítica social mais difusa que a da canção de  Violeta Parra, em que ela diz claramente que não são as canções de intervenção social que agitam as massas populares, mas sim as condições de miséria, a repressão e as políticas governamentais***.

Me han preguntádico varias persónicas
Si peligrósicas para las másicas
Son las canciónicas agitadóricas
Ay, qué pregúntica más infantílica
Sólo un piñúflico la formulárica
Pa' mis adéntricos yo comentárica

Le he contestádico yo al preguntónico
Cuando la guática pide comídica
Pone al cristiánico firme y guerrérico
Por sus poróticos y sus cebóllicas
No hay regimiéntico que los deténguica
Si tienen hámbrica los populáricos

Preguntadónicos, partidirísticos
Disimuládicos y muy malúlicos
Son peligrósicos más que los vérsicos
Más que las huélguicas y los desfílicos
Bajito cuérdica firman papélicos
Lavan sus mánicos como piláticos

Caballeríticos almidonádicos
Almibarádicos mini ni ni ni ni
Le echan carbónico al inocéntico
Y arrellenádicos en los sillónicos
Cuentan los muérticos de los encuéntricos
Como frivólicos y bataclánicos

Varias matáncicas tiene la histórica
En sus pagínicas bien imprentádicas
Para montárlicas no hicieron fáltica
Las refalósicas revoluciónicas
El juraméntico jamás cumplídico
Es el causántico del desconténtico
Ni los obréricos, ni los paquíticos
Tienen la cúlpica, señor fiscálico

Lo que yo cántico es una respuéstica
A una pregúntica de unos graciósicos
Y más no cántico porque no quiérico
Tengo flojérica en los zapáticos
En los cabéllicos, en el vestídico
En los riñónicos y en el corpíñico


2. De cantigas com rimas esdrúxulas e letratura comparada, que é como eu chamo ao estudo de influências e semelhanças em canções de mundos diferentes, ficamos por aqui. Mas não é só para vos apresentar estas cantigas que este texto serve. É também para falar de encontros consonânticos que o não chegam a ser — ou que deixaram de o ser, talvez...

Provavelmente repararam que, no “Drama de Angélica”, há na letra duas palavras que, em princípio, não são esdrúxulas em português europeu, mas que o são de facto no português brasileiro atual, ritmo e maligna. Sabemos que a estrutura fonética do português do Brasil não admite certos encontros consonânticos e que, por isso, surge aqui uma vogal entre a consoante em fim de sílaba e a consoante inicial da sílaba seguinte, produzindo uma nova sílaba. Assim, rit-mo transforma-se em rí-ti-mo e ma-lig-na transforma-se em ma-lí-gui-na. Verifiquei que o mesmo se passa por vezes no português moçambicano (por causa do substrato banto?), mas não tenho uma ideia clara nem da extensão do fenómeno, nem se ele se começa a verificar no falar dos jovens que têm o português como língua materna, e nem se se verifica nas outras variantes africanas do português.

Muitos acharão que se trata de uma diferença efetivamente estrutural (fonológica) entre o português europeu e pelo menos o português do Brasil, porque, em português europeu, não temos grandes problemas com encontros consonânticos: pronunciamos ritmo e maligna, sem mais sons entre o /t/ e o /m/ de ritmo ou entre o /g/ e o /n/ de maligno. Aliás, produzimos constantemente, até, sequências de muitas consoantes, mesmo em palavras que, etimologicamente — e na escrita — não têm encontros consonânticos, porque os EE átonos podem pronunciar-se [ɨ]* (se falamos muito pausadamente, por exemplo, ou num registo formal) ou podem não se pronunciar, que é o que acontece a maior parte das vezes: por exemplo, a palavra telefone pode dizer-se [tɨlɨfɔnɨ], com as suas supostas quatro sílabas, ou [tlfɔn], numa única sílaba.

Tenho muitas vezes observado, porém, no português europeu — e é aqui que queria chegar — a ocorrência de um som não assinalado na grafia exatamente nos mesmos contextos em que ocorre o /i/ dito epentético de rítimo ou malíguina. Só que o som é um [ɨ], o som dos EE átonos. Tomemos por exemplo, a palavra pneu, que não tem historicamente nenhum som entre o P e N. Se, no Brasil, se ouve sempre pineu, em Portugal também se ouve às vezes peneu. O mesmo em, por exemplo segmento, subsolo, admitir e até palavras como claro ou credo, que se podem ouvir pronunciadas sèguemento, subessolo, ademitir, quelaro ou queredo. Não sei se alguma vez ouvi o maligno da canção pronunciado malígueno em Portugal, mas não me surpreenderia. E tenho a certeza de que ritmo se diz muitas vezes rítemo**. Palavras terminadas em R também se pronunciam muitas vezes com um [ɨ] final: falare, mulhere

Não sei se é um fenómeno novo, nem no Brasil nem em Portugal. No caso do português brasileiro, parece haver, como disse atrás, uma impossibilidade de certos encontros consonânticos, que é, aliás, semelhante à que se verifica noutras línguas ibéricas. Esta característica pode existir desde estados muitos anteriores da língua e os encontros consonânticos de que a escrita aparentemente dá conta podem nunca o ter sido de facto, que é como quem diz que ritmo e maligno podem ter-se pronunciado sempre com alguma vogal entre as consoantes em contacto, como se pronunciam atualmente no português do Brasil. Mas também pode ser que esses encontros consonânticos tenham sido possíveis em fases anteriores da língua e só mais recentemente se tenham tornado impossíveis no português brasileiro. Nunca vi nada escrito sobre o assunto, não sei. Não sei...

Agora, o apagamento, na pronúncia, dos EE átonos veio produzir um grande número de encontros de consoantes, às vezes cinco de seguida (!), que tornam o português europeu difícil de pronunciar e de compreender, mesmo para falantes de línguas próximas ou até de outras variantes do português. Mas cria também uma incerteza no sistema, que é como quem diz, na cabeça dos falantes da língua: quando é que há um [ɨ] não pronunciado ou quando é que não há som nenhum? Isto faz, por exemplo, não só que se hesite na grafia de palavras como Amsterdão/Amesterdão (ambas formas correntes), mas também que se escreva (aqui erro ortográfico, claro!) eslado em vez de gelado, como eu já vi escrito: de facto, ouvindo-se apenas [ʒladu] e sendo jlado estranho à grafia portuguesa, tanto um hipotético eslado como gelado se leem da mesma forma se o E for mudo — a primeira parte da palavra, até ao /a/, não se distingue da mesma sequência em eslavo.

Uma estratégia simples do cérebro dos falantes (da língua, seja), para regularizar a estrutura dos encontros consonânticos pode ser «postular» um E átono não pronunciado entre todos eles — ou pelo menos entre vários deles. É possível que se transformem estruturalmente (ou se tenham transformado ou se estejam a transformar…) encontros consonânticos em duas sílabas — dí-gue-no, a-pe-ti-dão — que podem ou não, em Portugal, ser pronunciadas como uma só. Não tenho, infelizmente, nem tempo nem meios para testar seriamente a hipótese, mas a ideia aqui fica.


_______________

* Este som é muitas vezes transcrito [ə], embora não seja realmente um schwa, pelo que prefiro transcrevê-lo aqui de forma mais rigorosa

** E até rítimo, que ouvi em sotaques populares lisboetas, que conservam alguns [i] em vez de [ɨ]; mas isto é, estou em crer, muito excecional.

*** A versão reconstruída da letra, sem os satíricos esdrúxulos: 

«Me han preguntado varias personas si peligrosas para las masas son las canciones agitadoras. Ay, qué pregunta más infantil, sólo un piñufla la formularía, para mis adentros yo comentaría. 

Le he contestado yo al preguntón: Cuando la guata pide comida, pone al cristiano firme y guerrero por sus porotos y sus cebollas. No hay regimiento que los detenga, si tienen hambre los populares.

Preguntadones partidaristas, disimulados y muy malulos, son peligrosos más que los versos, más que las huelgas y los desfiles. Bajito cuerda firman papeles, lavan sus manos como Pilatos.

Caballeritos almidonados, almibarados, mi-ni-ni-ni-ni-ni, le echan carbón al inocente y arrellenados en los sillones cuentan los muertos de los encuentros como frívolos y bataclanes.

Varias matanzas tiene la historia, en sus páginas bien imprentadas. Para montarlas no hicieron falta las refalosas revoluciones. El juramento jamás cumplido es el causante del descontento. Ni los obreros, ni los paquitos tienen la culpa, señor fiscal.

Lo que yo canto es una respuesta a una pregunta de unos graciosos. Y más no canto porque no quiero: tengo flojera en los zapatos, en los cabellos, en el vestido, en los riñones y en el corpiño-»

E uma tradução possível, para quem não perceba bem o espanhol de Violeta:

«Várias pessoas me perguntaram se canções agitadoras são perigosas para as massas. Ah, que pergunta infantil, só um miserável a faria, comentaria eu de mim para mim.

Respondi eu ao perguntador: Quando a barriga pede comida, torna-se uma pessoa firme e guerreira por feijão e cebola. Não há regimento que detenha os populares, quando têm fome.

Perguntadores partidários, dissimulados e maldosos, são mais perigosos que versos, e que greves e desfiles. Assinam papéis pela calada, lavam as mãos como Pilatos.

Senhorzinhos engomados e xaroposos, mi-ni-ni-ni-ni-ni, atiçam os inocentes e, esparramados nas poltronas, contam as mortes dos recontros como sendo frívolas e teatrais.

A história tem vários massacres, nas suas páginas impressas. Para os perpetrar não foram precisas tímidas revoluções. O juramento nunca cumprido é a causa do descontentamento. Nem os trabalhadores nem os polícias têm culpa, senhor juiz.

O que canto é uma resposta a uma pergunta de uns engraçadinhos. E não canto mais porque não quero: sinto-me fraca nos sapatos, no cabelo, no vestido, nos rins e no corpete.»