A sociolinguística é uma área de estudos a que nunca me dediquei muito, mas posso dizer, ainda assim, que foi um dos linguistas que mais me marcou. Lembro-me bem que, quando li Sociolinguistic Patterns, fiquei muito impressionado com o rigor da metodologia e da análise dos dados recolhidos. Foi sem dúvida uma das obras que criou em mim a paixão que tenho pela linguística.
Muito haveria a dizer sobre a obra de Labov, mas não sou a pessoa mais indicada para o fazer. O link aí acima pode dar-vos uma boa ideia, se dominarem bem o inglês, da importância do linguista e de algumas das suas principais áreas de atividade. Também deixo aqui um link para um vídeo com doze anos, feito quando Labov tinha 85 anos, que dá uma muito breve panorâmica da sua vida, obra e ideias. Também podem ler, por exemplo, um texto que o próprio Labov escreveu em 1987, a contar como é que foi parar à linguística e o que é que a linguística que lhe deu. Ou procurem vocês, há muita coisa dele e sobre ela na Internet. Hão de gostar.
PS: Falei aqui uma vez na Travessa de um dos seus princípios da mudança linguística e talvez queiram dar uma saltada a esse breve artigo. A foto é tirada de uma página da Universidade da Pensilvânia e acho que se pode aqui considerar uso aceitável...
É lugar-comum — de tão evidente que é — referir-se a influência de Jijé em Jean Giraud. Joseph Gillain, mais conhecido como Jijé, é sem dúvida um dos autores mais importantes de banda desenhada da chamada escola belga e não foi apenas Jean Giraud que o seu traço influenciou. Mas, dos seus muitos discípulos, digamos assim, Jean Giraud, também conhecido como Gir e Mœbius, foi talvez o mais importante — e partilhou com o mestre um dos géneros em que se tornou mais popular, o western: sem dúvida que Blueberry deve muito a Jerry Spring.
O que vos apresento a seguir é um olhar de relance sobre o início da relação entre os dois criadores e o impacto que ela tem em Giraud. Gilles Ratierdiz-nos que «[e]m 1958, pouco antes de cumprir o serviço militar[, Jean Giraud] decide conhecer pessoalmente, na companhia dos seus amigos [Jean-Claude] Mézières e [Patrick] Mallet, o desenhador que sempre os inspirou: Jijé. Este último, que vive nessa altura na região de Paris, encoraja calorosamente estes promissores novatos». Giraud diz que este encontro o marcou muito. Jijé tinha em comum com ele ter vivido no México, mas, reconhece Giraud (obviamente) em bota tivessem ambos «fontes autênticas», Jijé tinha-as integrado muito melhor do que ele: «a sua bagagem gráfica era muito maior».
É curioso ver como Jijé relata este encontro e a sua «colaboração» com Giraud (daqui):
Jean [Giraud] veio a minha casa, acompanhado por Mézières e Mallet; deviam ter uns dezoito anos e estudavam, creio eu, nas Arts-Déco ou na Estienne. Pareceram-me muito atenciosos com Mallet, que sofria de surdez. Não me recordo de nada desta visita, a não ser da jovialidade e da descontração de Mézières. Mais tarde — não sei como, nem quando, nem porquê —, foi sobretudo Giraud que voltei a ver. O seu desenho era o único, na época, que tinha valor do ponto de vista técnico. Não me recordo em que circunstâncias começou a trabalhar para mim. Sem dúvida, como aconteceu várias vezes com outros jovens, passou algumas tardes a desenhar e a conversar no atelier... Ofereci-lhe uma colaboração no Jerry Spring. Já não me recordo do verdadeiro motivo; penso que foi com a intenção de lhe ensinar o ofício na prática. Iniciou «La Route de Coronado» com grande dificuldade e imediatamente, sempre com um objetivo prático, passámos a dividir o trabalho: Jijé desenhado a lápis, Giraud passava a tinta, sob a minha direção, e com retoques de Jijé.
Não se deixem confundir pela referência a si próprio na terceira pessoa: é Jijé quem fala. O «mais tarde» a que ele se refere é o reencontro quando Giraud volta da tropa. Agora a perspetiva de Giraud:
Quando voltei da tropa, fui ter com Gillain outra vez […]. Ele achou que já estava em condições de fazer uma banda desenhada com ele: «La Route de Coronado», no Spirou: Joseph desenhava e eu passava a tinta. […] Não era seu «assistente», era seu «aluno». Tendo eu a admiração que tinha por ele, esta proposta foi uma grande emoção da minha vida. Era quase como se ele me tivesse dito: «Queres que eu seja teu pai?» Eu não tinha pai e, coisa maravilhosa!, arranjei um. E um pai no desenho! Trabalhámos assim durante um ano. […]
A minha relação com Gillain é realmente uma relação de pai e filho. Durante o tempo em que trabalhei com ele, ele quis ser meu pai e eu quis ser seu filho. A transferência parental deu-se na esfera artística, assumi com entusiasmo o papel de filho dele no desenho. Foi uma época maravilhosa. Joseph era um pai perfeito. Só me posso congratular pelas lições que ele me deu...
Para os amadores de BD, e em especial para os admiradores de Jijé e de Jean Giraud, como eu, é interessante saber tudo isto, mas não é menos interessante ver como o traço de Giraud evolui desde os seus primeiros westerns «realistas» com a personagem Art Hawell em 1957 até ao início da série Blueberry no Spirou, em 1963, naquela altura ainda como «Fort Navajo» (que veio a ser o nome do primeiro álbum, quando a série foi publicada em álbuns).
Se olharmos para pranchas de Giraud de 1957 e 1958, é fácil ver por que razão, da visita dos jovens Giraud, Mézières e Mallet, Jijé se lembra sobretudo da vivacidade de Mezières; e pode-se imaginar em que termos encorajou o jovem Giraud... A técnica de Giraud é ainda perfeitamente amadora, com falhas básicas em termos de anatomia, proporções e perspetivas etc., mas não deixa de se notar claramente a influência de Jerry Spring.
Duas pranchas da série Art Hawell, com desenhos de Jean Giraud. A da esquerda é de 1957 e a da direita de 1958.
Nas pranchas de Jerry Spring passadas a tinta por Giraud, já não se nota nada deste amadorismo — nem podia notar-se, já que o desenho, onde se notavam, nas pranchas acima, as insuficiências de Giraud, é aqui só de Jijé. Se houve também insuficiências na passagem a tinta, Jijé corrigiu-as. Mas foi sem dúvida uma grande escola. Aprende-se muito ao passar a tinta os desenhos de um grande desenhador, sobretudo se se tem já o talento inato que Giraud tinha.
As páginas 12 e 14 de «La Route de Coronado», um episódio da série Jerry Spring, de Jijé. Desenho de Jijé, tinta de Jean Giraud e Jijé.
Nas histórias ilustradas apenas por Giraud nesse mesmo ano, notam-se grandes progressos, embora o desenhador não tivesse ainda atingido a sua maturidade artística. A influência de Jijé e do seu Jerry Spring continua a ser evidente.
Um western de Jean Giraud em 1961.
A primeiríssima prancha da famosa série Blueberry.
Foi publicada no nº 210 da revista Pilote, a 31.10.1963.
Note-se que Giraud já assina Gir. O pseudónimo Mœbius só surgirá em 1974.
Em 1963, é publicada a primeira aventura do tenente Mike Blueberry, com guião de Jean-Michel Charler, que viria a suplantar em fama o seu «antepassado» Jerry Spring. É clara a evolução do desenho de Gir relativamente às páginas de 1961 apresentadas acima, mas não tem ainda a qualidade que lhe conhecemos na sua obra posterior e que fará dele não só um nome maior da BD mas também um dos grandes desenhadores da segunda metade do século passado.
Em 1972, dez anos depois de o jovem Giraud ter colaborado com o seu mestre Jijé na passagem a tinta de algumas pranchas de Jerry Spring, «pai» e «filho» fazem um cadavre exquis em direto na televisão francesa. Nessa altura, Gir tinha já publicado dez volumes da sua famosa série Blueberry, era já um autor de BD famoso e o seu traço já não era em nada menos seguro e elegante que o do seu mestre.
A ideia de que uma pessoa se vai tornando mais sábia com a idade está tão espalhada que a aceitamos sem a escrutinar, como verdade a priori. Mas será mesmo assim?
Evidentemente, a questão de fundo é definir sabedoria. Uma volta pelas definições dos dicionários, depois da limpeza de redundâncias e sinonímias mascaradas, dá-nos dois tons de sabedoria:
Às vezes, diz-se sábia a pessoa com erudição, com grandes conhecimentos. É natural: afinal a palavra vem de saber, não é verdade? Sábio é quem sabe muito, pois então…
Mas sabedoria também pode ser bom senso, sensatez, juízo, em última análise talvez maturidade. Aqui já não é saber coisas que conta, mas saber da vida, ter dela experiência.
Ludwig Knaus, Avô e neto a conversar, s.d. ca. 1900
Quanto ao primeiro significado de sabedoria, se se pode argumentar que mais tempo de vida dá mais tempo para se instruir, também é inegável que há quem aos 25 anos tenha mais conhecimentos que a maior parte das pessoas aos 75; e que o tempo, a partir de certa altura, já não é saber que traz, mas perda da capacidade de articular — quando não de recordar — os conhecimentos que já se teve. O diabo sabe muito por ser velho, mas talvez já tenha sabido ainda mais antes de o ser…
Passemos ao outro significado de sabedoria. Na aceção de sensatez, a idade conta, mas talvez nem sempre como estamos habituados a pensar. É evidente que a acumulação de experiência de vida nos vai tornando mais ajuizados. Quando temos um reportório maior de resultados observados de determinadas ações e escolhas, sabemos melhor quais é resultam ou, no mínimo, quais é que não resultam. Agora, pode-se pensar-se também que talvez haja outro lado menos positivo do acumular de experiência, se esta cristalizar, a certa altura, numa conceção de normalidade que freia a acumulação de novas experiências.
Mas enfim, isto sou a falar, com algum bom senso, talvez, mas duvidosa sabedoria. Que diz sobre a questão quem muito refletiu sobre ela e/ou a investiga? É uma coisa que me acontece cada vez mais com a idade: quando acabo de refletir sobre qualquer coisa, sinto necessidade de ver o que já foi dito sobre ela. E, claro, a minha própria reflexão revela-se normalmente sem grande interesse, quando confrontada com o que pensaram pessoas mais informadas que eu. Agora, não sei esta consciência é um produto da minha crescente sabedoria ou se o que eu penso, com a degradação de capacidades que a idade vai trazendo, é cada vez menos inspirado e interessante… Mas adiante.
II
Antes de mais, assentemos em que wisdom em inglês corresponde bem a sabedoria em português. Pode haver nuances semânticas entre a noção de wisdom em inglês e a noção de sabedoria em português, mas creio que, no geral, as duas palavras são usadas para referir uma mesma capacidade ou característica; e que, quando se fala de uma pessoa sábia se está querer dizer o mesmo que quando se diz a wise person. E esclareço isto, porque não encontrei estudos sobre sabedoria em português, só sobre wisdom em inglês.
É claro, uma vertente fundamental da investigação sobre sabedoria é a investigação sobre a própria definição do conceito. Embora sempre em relativa consonância com as definições do senso comum e dos dicionários, os estudiosos não têm todos exatamente a mesma conceção de sabedoria*. Há quem defina a sabedoria a partir de três facetas essenciais: um profundo e abrangente conhecimento de si próprio, dos outros e do mundo [a faceta cognitiva da sabedoria], regulação de emoções complexas, no sentido de tolerância da ambiguidade [a faceta emotiva da sabedoria]; e uma orientação que transcenda o interesse próprio e se centre no bem-estar dos outros e do mundo [a faceta motivacional]. Há quem defina a sabedoria a partir de cinco critérios de base: grande conhecimento de factos, grande conhecimento processual (estratégias para dar conselhos ou resolver conflitos), contextualização dos problemas, relativismo de valores (aceitar as divergências entre indivíduos); e reconhecimento e gestão da incerteza. E há também quem defina mais sucintamente a sabedoria como aplicação de conhecimentos tácitos a problemas em que há conflitos entre indivíduos ou aspetos da vida.
É importante notar, sobretudo, que as capacidades atrás referidas não são, isoladamente, suficientes para constituir sabedoria. Para que a sabedoria se desenvolva numa pessoa, é necessária a convergência de certos traços de personalidade, como inteligência, criatividade, sociabilidade, equilíbrio emocional, orientação ética; alguma, mas não demasiada, autoestima e voluntarismo; e experiência de vida, sobretudo de situações difíceis.
Além disso, costuma dividir-se a sabedoria em sabedoria individual e sabedoria geral, conforme se trate de sabedoria sobre si próprio ou sabedoria sobre os outros. Estes dois tipos de sabedoria podem estar mais ou menos presentes numa pessoa, ou pode até estar presente só um deles. Muitos de nós conhecemos provavelmente pessoas que são boa conselheira de outros, mas procuram aconselhamento para os seus próprios problemas, que não conseguem analisar nem resolver.
Outra questão que se coloca é a da natureza da sabedoria: pensamos na sabedoria como característica ou competências, ou leque de capacidades ou competências, mas de um tipo mais essencial ou mais ocasional? Alguns estudiosos discutem se se trata de uma característica pessoal (uma pessoa é sábia ou não é) ou antes de um estado (uma pessoa tem sabedoria em certos momentos ou situações, mas não forçosamente em todas). E há quem defenda, com base em evidência, que se trata mais de um estado que de um traço estável de um indivíduo**.
III
E então, a sabedoria vai ou não aumentando com a idade? Evidentemente, não é fácil medir sabedoria e, como as definições de sabedoria nem sempre coincidem em pormenor, não são sempre exatamente as mesmas capacidades, competências, etc. — ou seja, a mesma sabedoria — que cada investigador quer medir, o que dificulta uma análise conjunta dos diversos estudos. Ainda assim, parece haver algumas conclusões a tirar da análise das medições que se fazem, às vezes como questionários de autoavaliação, outras vezes como análise de desempenho — e também no que toca à relação entre sabedoria e idade.
Sabe-se que, em geral, é mais difícil uma pessoa, sábia ou não, ter um bom conhecimento de si própria que das outras e que as crianças desenvolvem um conhecimento do mundo antes do autoconhecimento. Poderíamos, portanto, pensar que a sabedoria geral surge antes da sabedoria individual. Sabe-se também que, por outro lado, a memória funciona melhor para informação relacionada connosco próprios — mas que há casos, porém, em que apagamos ou modificamos inconscientemente recordações negativas.
No geral, a idade não parece ser fator determinante nem de sabedoria geral, nem de sabedoria. «Adultos mais velhos apresentam desempenho tão bom quanto adultos mais jovens. (…) Mas, como esperado, envelhecer não é suficiente para se tornar mais sábio. Em vez disso, descobrimos que adultos mais velhos tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da sua idade, e adultos jovens tiveram melhor desempenho em dilemas típicos da juventude.»*
Demos a palavra a Julie Erickson, que resume a questão muito melhor do que eu seria capaz de fazer***:
«Há componentes que aumentam, permanecem estáveis e diminuem, bem como fatores contextuais relevantes que influenciam a trajetória da sabedoria ao longo da vida.
Aspetos da sabedoria que se sabe que melhoram, com base em pesquisas longitudinais e transversais, são a experiência de vida, a capacidade de autorreflexão sobre essas experiências, a regulação emocional, a empatia e a perspetivação. Isso sugere que, à medida que envelhecemos, geralmente vamos aprendendo a guardar espaço para diversas emoções e vamos aprendendo com a experiência, ao mesmo tempo que nos vamos tornando mais amáveis e mais conscientes das experiências dos outros.
Também há aspetos da sabedoria que podem não ser tão fortes numa idade mais avançada: quando é necessária rapidez no processamento de informações — por exemplo, na resolução de problemas novos e complexos — os idosos têm um desempenho inferior. Muitos idosos, porém, podem aprender a compensar esse declínio usando outros pontos fortes, como basear-se em experiências anteriores com problemas semelhantes.»
IV
Não que a minha impressão inicial se afastasse muito destas conclusões, mas sinto que o texto ganhou em não ter ficado só pelos sete parágrafos iniciais. E eu mais que o texto. Quando se investiga alguma coisa, encontra-se sempre mais do que se procura e, também por isso, é sempre bom investigar tudo — ora aí está uma migalha de sabedoria que a minha experiência me ensinou.
Já agora, para terminar, uma constatação interessante descrita num artigo de Ursula Staudinger e Judith Glück*: as pessoas consideradas sábias dão conta de menos emoções, tanto negativas como positivas, que as outras pessoas, mas revelam-se emocionalmente mais empenhadas nos outros que as pessoas não consideradas sábias. Sábio é, concluo eu então, quem vive com moderação, também emocional, e não num romântico carrossel de afetos; e quem centra a sua vida nos outros e não em si próprio — virtudes em que muito já se tem insistido, não é verdade?, e desde há muito tempo... e que se aplicam a qualquer idade.
_________________
* A maioria das informações que me permitiram compor o texto que se segue e a citação assinalada com * vêm de um artigo que Ursula Staudinger e Judith Glück publicaram no nº 62 da Annual Review of Psychology, em 2011: Psychological wisdom research: Commonalities and differences in a growing field. Foi o que de mais panorâmico consegui encontrar quando me propus tentar ter uma ideia do que diziam os psicólogos sobre a questão.
*** Julie Erickson, «Do We Get Wiser as We Age? Aspects of wisdom both increase and decrease as we age», publicado em Psychology Today a 16 de junho de 2024.
Há uns anos, encontrei, já não me lembro onde, umas páginas de um jornal sueco dos anos setenta, que tinham uma entrevista com Cornelis Vreeswijk — um importante cantautor sueco-neerlandês, muito conhecido em toda a Escandinávia —, em que ele contava como ficara fascinado com o primeiro álbum de Georges Brassens: dizia que, quando ouviu «Le petit cheval blanc», foi um mundo novo que se abriu para ele. E considerava Brassens um dos cantautores que mais o influenciara[1].
No outro dia, vi uma entrevista com Isabelle Mayereau — uma cantautora francesa, menos conhecida do que merecia, acho eu —, em que ela descreve o mesmo fascínio quando, menina ainda, ouviu pela primeira vez esse álbum, que o seu pai acabava de comprar. Foi esse disco, diz ela, que, lhe deu vontade de começar a aprender a guitarra[2].
Não há nada mais diferente de Cornelis Vreeswijk que Isabelle Mayereau. E, no entanto, Brassens foi influente para ambos — para terem feito o que fizeram. Não que os tenha influenciado musicalmente, que influência musical é outra coisa. Mas coincidirem Vreeswijk e Mayereau no fascínio por Brassens é mais que pura coincidência, se me permitem o trocadilho.
O primeiro álbum de Brassens, estou eu em crer, é uma obra altamente influente em toda a canção de autor europeia. Pelo menos, na canção de autor europeia. Evidentemente, não será o único álbum influente de Brassens, já que Brassens foi sempre influente. Mas era uma novidade, pelos textos e pelo espírito em geral, e também pela sonoridade: não se tinham com certeza gravado muitos álbuns europeus de canção de texto em que o autor se acompanhasse a si próprio com guitarra acústica, neste caso apenas secundado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.
Brassens foi, sem dúvida, um dos pioneiros desta sonoridade, mas, como acontece com todos os pioneiros, tinha havido outros pioneiros antes dele. Brassens diz, numa entrevista de 1961, que tinha sido Félix Leclerc — um grande cantautor quebequense — que o tinha ajudado, com «a sua singeleza, o seu despojamento, a sua maneira de cantar sem artifícios, uma maneira de cantar contrária a tudo o que se tinha feito até então». «Foi decerto isso», continua Brassens, «que me permitiu chegar ao palco e ser aceite, porque já se tinha aceitado Félix Leclerc.»
Leclerc também se apresentava, ao vivo e em disco, muitos vezes sozinho com a sua guitarra. Era sete anos mais velho que Brassens, mas a sua carreira discográfica só precedeu em dois anos a do cantautor francês. Entre 1950 e 1952, porém, Félix Leclerc dera muitos espetáculos em França e tivera aí um grande sucesso, sendo o seu estilo considerado muito inovador na canção de língua francesa. É neste contexto que se devem entender as declarações de Brassens.
Ainda bem que há um site como o Second Hand Songs que nos dá uma visão global, se bem que forçosamente incompleta, de uma das formas tangíveis da influência de um cantor ou de um compositor de canções: as versões que são feitas das suas canções. Das seis canções do primeiro álbum de Brassens atrás referido, todas foram objeto de muitas versões: há pelo menos[3] 13 versões gravadas de “La chasse aux papillons”, 25 versões gravadas de “La mauvaise réputation”, cinco versões gravadas de “Le fossoyeur”, 28 versões gravadas de “Le gorille”, 20 versões gravadas de “Le parapluie” e seis versões gravadas de “Le Petit Cheval”, uma das poucas canções de Brassens em que ele musica um poema alheio, neste caso «Complainte du petit cheval blanc», de Paul Fort.
Não surpreende que a maior parte das versões sejam em francês, mas há ainda assim um número razoável de versões noutras línguas: “La chasse aux papillons” tem versões em hebraico, espanhol e neerlandês; “La mauvaise réputation” tem versões em inglês, hebraico, italiano, duas em português[4], e três em espanhol, uma das quais (a de Paco Ibañez) cantada pelo próprio Brassens; “Le fossoyeur” tem uma versão em hebraico e outra em espanhol; “Le gorille” tem uma versão em inglês, duas em alemão, uma em hebraico, uma em italiano, uma em polaco, duas em espanhol, uma em neerlandês, uma em grego, e uma em sueco, gravada por vários artistas, entre os quais Cornelis Vreeswijk; e “Le parapluie” tem versões em catalão, finlandês, hebraico, italiano, espanhol e sueco.
“Le petit cheval” é a única que nunca foi adaptada para outro idioma.
A maioria das versões estrangeiras das canções deste primeiro disco de Brassens são do fim dos anos 60 e da década de 70. Talvez tenha sido só mais de uma década e uma dezena de álbuns mais tarde que Brassens começa a ser amplamente conhecido pelo mundo fora, ou na Europa, pelo menos. É bem possível que o contexto social dos anos sessenta e a difusão das sonoridades «despojadas» na canção popular tenham ajudado à divulgação da sua obra em geral, incluindo as canções mais antigas, junto de um público mais alargado. A exceção a este compasso de espera é a adaptação sueca de “Le gorille” por Lars Forssell, que data de 1959. É precisamente esta adaptação que Cornelis Vreeswijk viria a gravar em 1972.
Das outras versões desta canção, destaco a de Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantautores italianos e a de Jake Thackray. Thackray é às vezes referido como o «Noël Coward do Norte de Inglaterra», mas, muito provavelmente, ele teria preferido que lhe chamassem o «Brassens inglês». A versão ao vivo que aqui vos deixo é de finais de novembro ou início de dezembro de 1972, porque Thckray refere a execução na guillhotina de Claude Buffet e Roger Bontems, a 28 de novembro de 1972, na prisão La Santé, em Paris.
_______________
[1] Vreeswijk tinha 16 ou 17 anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e estava a residir na Suécia há quatro anos. Não faço ideia de onde meti a revista onde li isto, mas esta influência é conhecida: Vreeswijk deu conta dela em várias entrevistas (ver aqui, por exemplo, infelizmente em sueco).
[2] Isabelle Mayereau tinha só seis ou sete anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e é natural que o tenha ouvido alguns anos mais tarde. Ouvir aqui a partir de 2:50.
[3] A informação disponível em Second Hand Songs é altamente fiável, devido ao rigor do processo de escrutínio das contribuições (e eu sei, porque contribuo para o site), mas, naturalmente, nada garante que cubra a totalidade das versões de uma canção. Aliás, é praticamente certo que não cobre...
[4] Na altura em que estou a escrever isto, das canções do primeiro álbum de Brassens, só está listada uma versão confirmada em português, «A má reputação», de Bïa; mas eu conheço uma segunda, de Luís Cília, que já enviei ao Second Hand Songs e que aguarda aprovação.
Conheço aqui pouca gente e há conversas que não tenho com quem ter. Aqui fica metade dessas conversas. Não querem contribuir com a metade que falta? [Foto da Travessa do Fala-Só de Rodrigo Cortez]
Quem se interessar pelo português falado em Moçambique pode visitar um faz-de-conta-que-blogue que eu fiz, que é, de facto, um glossário de moçambicanismos.
Aqui fica um endereço de e-mail, para o caso de alguém querer comentar ou discutir alguma coisa do que eu para aqui vou escrevendo:
A disposição das imagens está calculada para um ecrã de computador. A maior parte das páginas do blogue vêem-se e lêem-se mal nos formato de tablet ou telemóvel. Aconselho, por isso, que, para ler as páginas do blogue em tablets ou telefones, escolha a opção «Ver a versão da Web».
Gralhas, há muitas. Está visto que não sirvo para revisor, e muito menos dos meus próprios textos... Um pedido, então, à malta amiga que por aqui passar: deixem-me correcções nos comentários, sim?
Já agora, peço também que me digam, se encontrarem links que tenham deixado de funcionar. Antigamente, fazia uma revisão regular dos links, mas agora a Travessa tem muitos textos e muito texto, e uma revisão dessas demora mais tempo do que aquele que normalmente tenho para dedicar ao blogue.
Ah, a propósito de links: Como todos os textos têm uma data de publicação, acho desnecessário estar a escrever em cada link a data de acesso – assumo que a data de todos eles é a data de publicação do post onde eles vêm.
E muito obrigado!
A partir de agosto de 2011, passo a escrever com a nova ortografia.
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