Costumam os portugueses dizer que de boas intenções está o inferno cheio. Já os ingleses dizem que a estrada para o inferno está pavimentada com boas intenções, o que, sendo mais bonito, não acrescenta muito ao sentido da frase. Mais interessante, pelo menos para o tema que quero aqui desenvolver, é uma versão espanhola do provérbio, que diz que o inferno está cheio de boas intenções e o céu de boas obras
[1].
Vocês sabem (ou, se não sabem, ficam a saber) que eu não acredito em céu e em inferno mais do que acredito no Pai Natal, de maneira que o provérbio, como o título do
post, são só um pré-texto. A questão que me interessa, e para a qual o provérbio serve apenas de introdução, é a seguinte: Para se agir bem – ou para se agir mal, a questão coloca-se da mesma forma – é condição necessária e suficiente ter a intenção de o fazer?
John Stuart Mill, um moralista de que eu gosto, afirma, a dado passo de
O utilitarismo, que “a moralidade de uma acção depende inteiramente da intenção – quer dizer, do que o agente quer fazer – mas o motivo, quer dizer, a razão que faz com que deseje actuar assim, se não afectar o acto, não afecta a sua moralidade.”
Foi-me fácil, quando li isto, concordar com J. S. Mill quanto a deixar de lado o motivo na avaliação da moralidade de uma acção. Tinha um amigo (millista, pelo menos nisto, provavelmente sem o saber) que me dizia sempre que, se o meu trabalho numa qualquer organização de interesse, por exemplo, trouxer bons resultados aos beneficiários dessa organização, pouco importa que eu para lá tenha entrado para cortejar uma miúda ou para tentar mostrar aos outros que até sou um rapaz muito esperto
[2].
Ainda assim a distinção entre motivo e intenção levantou-me de imediato uma dúvida: Como avaliar a intenção de uma acção? O problema é que essa avaliação não parece poder ser feita senão a partir dos resultados da acção. Se a acção que eu quero praticar, com a melhor das intenções, devido a qualquer acidente, a qualquer força que não controlo, é transformada numa outra acção diferente da que eu pretendia praticar, o que é que resta da minha intenção? Como pode alguém saber que intenção tinha eu?
Tomemos o caso de que alguém, sob tortura, revela um segredo fatal para outras pessoas. A intenção era não o revelar, mas não foi suficientemente forte para não o fazer. A moralidade da acção que devemos julgar é apenas a tentativa de não revelar o segredo? Não se distingue a moralidade dessa acção da moralidade de outra acção em que, mesmo sob tortura, não se revela o segredo?
As muitas questões que a questão levanta, se posso dizer assim, empurraram-me, a certa altura, para uma espécie de objectivismo radical. Numa carta a uma amiga minha, dizia eu uma vez o seguinte:
“Há muita acção que se perde entre a intenção e a sua concretização, o que, se por um lado não tira o mérito da intenção ao seu autor, não lhe chega, tampouco, a dar o mérito da acção realizada, que é o mais importante, já que é esse que influi de facto na realidade… Dirás tu: significa isso que eu ter ou não esse maior mérito não depende, em última análise, de mim, já que, se a intenção é da minha exclusiva responsabilidade, a concretização de acção depende de factores que me são exteriores e, o mais das vezes, incontroláveis? Sim, na minha perspectiva – o mérito, como tudo na vida, é em parte (em grande parte…) dependente de acasos.”
Imediatamente depois de enviar a carta, arrependi-me de o ter feito. A minha posição era obviamente exagerada: relegando para segundo plano o nível das intenções e focando a minha avaliação moral na acção em si, coloco ao mesmo nível, em última análise, quem salve alguém de morrer afogado por sentimento de solidariedade com outro ser humano ou com a ideia de o torturar refinadamente em seguida
[3], contanto que a fase seguinte desse plano criminoso nunca se venha a realizar, seja lá por que razões for… É claro que a avaliação da acção em si é uma avaliação não da moralidade da acção mas da eficácia ou competência técnica com que a intenção foi ou não levada à prática e a palavra mérito, como a uso na carta à minha amiga, não tem um sentido essencialmente moral.
Acho que temos de aceitar que, como Mill propõe, é sempre ao nível da intenção de uma acção que está a sua moralidade, embora aceitando que nem sempre é possível avaliar essa moralidade, porque os resultados da acção são distorcidos relativamente à intenção do agente por factores externos à vontade desse agente. Acho que é necessária uma distinção entre o plano das intenções e o plano dos resultados: para agir bem ou mal, quer dizer, ter resultados que influenciem, para bem ou para mal, o estado de coisas sobre o qual me proponho agir, é necessário que à minha intenção (e à consequente moralidade ou imoralidade da minha acção) se venham juntar as condições práticas para a levar a cabo: capacidade técnica (em sentido alargado) e a ausência de forças contrárias.
Voltando à minha questão inicial, respondo então que para se agir bem ou para se agir mal não é condição necessária e suficiente ter intenção de o fazer, embora admita que a intenção de o fazer é a única base para a avaliação moral da minha acção. Donde que, pelo menos se Céu for metáfora de valor moral, é no Céu que repousam forçosamente as boas intenções e não no Inferno, que é o lugar das más intenções. E deve haver algum Limbo moral para acções propriamente ditas…
__________________
[1] Os provérbios são como a música popular – não foram criados pelo povo enquanto colectivo, que o povo colectivamente não cria nada, mas sempre por uma pessoa concreta que já nos esquecemos, ou nunca soubemos, quem é. Fiz uma pesquisa rápida à procura da origem da expressão e fiquei a saber que é provável que venha de São Bernardo de Clairvaux, que, no século XII, escreveu que “O inferno está cheio de boas intenções ou desejos”.
É preciso também deixar claro que não é de analisar o provérbio ou as suas diversas versões que aqui se trata, mas apenas, como deixei claro, de o usar como introdução a uma discussão. Na maior parte das vezes, o provérbio quer dizer outra coisa: o que é bem para uns não o é forçosamente para outros, e as acções realizadas com a intenção de fazer o bem podem não ser sentidas pelos outros (e não forçosamente apenas aqueles que se pretende beneficiar) como benéficas. Por interessante que seja essa discussão (na minha opinião, mais interessante até do que esta que aqui proponho – e mais difícil!), é outra discussão e deixo-a aqui de lado.
[2] Agora, a propósito da volúpia ou da vaidade como móbil de boas acções, é preciso acrescentar que John Stuart Mill, sensato que é, diz que avaliar o motivo, porém, “conta muito aquando da nossa apreciação moral do agente, especialmente se indica uma disposição habitual boa ou má, uma inclinação de que seja de esperar que resultem acções benéficas ou prejudiciais.” É algo que se pode e deve discutir, porque se liga com a questão de haver pessoas tendencialmente boas e menos boas e más, mas fica para outra ocasião. Pode-se também acrescentar que há muito quem defenda que, em última análise, todo o altruísmo tem como fim criar reconhecimento social e seduzir possíveis parceiros sexuais...
[3] O exemplo não é inventado por mim, é o que Mill e J. Llewellyn Davies usaram na sua discussão da questão.