16/01/10

Sol, areia e mar, igualdade e bem-estar

Regresso de férias. A minha avó dizia sempre: «A 2000 chegarás, de 2000 não passarás». Morreu a 3 de Abril de 2001, com 81 anos, de maneira que, como o mundo acaba, para cada um de nós, no exacto momento em que cada um de nós acaba, foi só por um triz (que foi de facto um trimestre, ou seja, foi só por um triz-mestre) que não se cumpriu a sua insistente profecia. Nós outros, que por cá ainda andamos, a 2010 já chegámos, e que o ano vos corra bem!
Pode parecer à primeira vista que a tese de Wilkinson e Pickett, na medida em que é uma defesa científica das vantagens das sociedades mais igualitárias, é um novo socialismo científico, mais científico do que o outro que houve antes. Mas é muito discutível que o seja de facto.
É verdade que os autores se identificam explicitamente com os ideais igualitaristas dos primeiros socialistas: “Os primeiros socialistas e outros acreditavam que a desigualdade material era um obstáculo a uma harmonia humana mais ampla, a uma fraternidade, sorelidade ou camaradaria humana universal. Os dados que apresentamos (…) sugerem que esta intuição estava correcta”. Esta intuição, porém, era de “socialistas e [de] outros”, e, sejam lá quem forem os outros, não há no livro nenhuma referência nem a Marx nem a Proudhon nem a Jaurès – mas há referências a Tocqueville e a Adam Smith… De facto, “em vez de sugerir uma via específica ou um conjunto de políticas para diminuir as diferenças de rendimento”, Wilkinson e Pickett preferem apontar que “há muitas maneiras de chegar ao mesmo destino”: “pode ser obtida maior igualdade usando impostos e regalias para redistribuir rendimentos muito desiguais ou através de maior igualdade nos rendimentos brutos antes de impostos e regalias”, de forma que “grandes governos podem nem sempre ser necessários para usufruir das vantagens de uma sociedade mais igual”. Dito de outra maneira, “a maneira como uma sociedade se torna mais igualitária é menos importante do que se é de facto igualitária ou não”.
Quanto às aspirações científicas da tese, bom, é claro que as tem – e é isso, precisamente, que a torna tão interessante. Os autores, porém (talvez para evitar conotações indesejáveis da palavra no campo sociológico, não sei), evitam usar o adjectivo científico e preferem dizer que é assente em provaspolítica assente em provas, eis como chamam eles à demonstração das vantagens do igualitarismo económico.
Agora, alguém se deixa convencer por provas? Como lembram Wilkinson e Pickett no capítulo introdutório, a verdade, sobretudo quando é uma verdade nova, parece não ter grande capacidade persuasiva… Uma pequena história tão dramática como moral tirada de The Spirit Level:
Em 1874, Ignaz Semmelweiss descobriu que, se os médicos lavassem as mãos antes de assistirem a partos, reduzir-se-ia drasticamente as mortes causadas por febre puerperal. Mas, antes de o seu trabalho poder ser de alguma utilidade, ele tinha de convencer as pessoas – principalmente os seus colegas médicos – a mudar de comportamento. A sua verdadeira luta não foi tanto a descoberta, mas o que se lhe seguiu. A sua opinião foi ridicularizada (…). Uma grande parte dos médicos não levou a sério o seu trabalho, até Louis Pasteur e Joseph Lister terem desenvolvido a teoria microbiana da doença, que explicava por que é que a higiene é importante.
Uma moral desta história é que não basta constatar que as coisas se passam de um determinada maneira, é preciso saber por quê. A ciência nunca se contenta com a descrição dos fenómenos, quer sempre explicá-los. Pode ser esse um dos problemas da epidemiologia, por exemplo, que é a área de trabalho fundamental dos autores do livro e onde surgiram as constatações da relação directa entre desigualdade e problemas sociais: pode-se constatar um fenómeno sem saber explicá-lo. Não que, no livro, Wilkinson e Pickett não proponham explicações plausíveis. Mas, (e entra aqui outra moral desta história) é preciso mais do que bons argumentos para convencer as pessoas: mesmo classes que, devido ao seu elevado nível de educação formal, são julgadas progressistas, como é o caso da classe médica, são de facto extremamente conservadoras. E, quando é de pôr em causa certezas tão arreigadas nas pessoas, haverá muita gente que não seja igualitarista à partida a discutir de facto as propostas do livro e a aceitá-las?
Uma das constatações do livro que muitos se negarão cegamente a aceitar, por mais provas que lhe apresentem, é a seguinte: se uma pessoa ganha, ponhamos, 10 vezes o salário mínimo nacional e tenta melhorar a sua vida tentando ganhar 15 vezes o salário mínimo nacional, está obviamente a escolher a estratégia errada – a melhor maneira de melhorar a sua vida é tentar conseguir que quem ganha o salário mínimo ou apenas 2 vezes o salário mínimo passe a ganhar mais. O crescimento do rendimento económico de uma pessoa é relativamente irrelevante quando comparado com as vantagens que lhe podem advir de um nivelamento de toda a sociedade.
Trata-se de uma constatação fundamental por várias razões: para além de insistir, com provas na mão, nas clássicas propostas da esquerda (de que a igualdade é o valor fundamental e de que a resolução dos problemas de cada um passa sempre pelo nível social, pela resolução dos problemas de todos), mostra-nos também que, ao contrário do que quase toda a gente afirma, à esquerda e à direita (ou quando não afirma insinua…) “há maneiras de melhorar a qualidade de vida nos países ricos sem mais crescimento económico”. De facto, tudo parece indicar que se pode até diminuir o nível de riqueza dos países ricos sem que ninguém viva pior por causa disso. Paralelamente a esta constatação de que, quando se é rico, não é mais dinheiro que dá a felicidade, outra constatação fundamental (relativamente marginal no livro, que se centra apenas nas sociedades ricas, mas fundamental na discussão da ajuda ao desenvolvimento) é que, sem dinheiro não há felicidade: até um nível de PIB da ordem dos 25 000 USD anuais per capita, a qualidade de vida e o bem-estar estão directamente relacionadas com a capacidade económica. Uma coisa óbvia, dirão muitos, e é provável que o seja, mas então por que é tão frequentemente esquecida?
Como dizia o meu amigo Seth Jenkinson na sua recensão de The Spirit Level que publiquei aqui na Travessa, o livro merece uma ampla discussão. A mim, que não sou propriamente sociólogo nem epidemiologista, surgiram-me várias dúvidas relativamente a algumas explicações para os fenómenos constatados, que me parecem algo ralas. Mas enfim, o grosso dos dados apresentados é sólido e, no mínimo, impressionante.
É claro, como li o livro na praia, perguntei-me logo que influência teriam o sol e o mar, precisamente, na minha apreciação das teses de Wikinson e Pickett. E estou convencido de que continuaria achar da maior importância as ideias defendidas no livro se o tivesse lido no desconforto do comboio suburbano a caminho do trabalho…
Li também nas férias um livro chamado 2666 (a 2010 chegámos quase 7 milhares de milhões, pois, mas a 2666, quantos chegarão?), mas disso falo amanhã.

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