A versão que me ensinaram em miúdo e que, por isso mesmo, eu provavelmente nunca me hei-de livrar, mil raivas me persigam!, de considerar a versão “original”, mesmo tendo plena consciência de que não tenho para isso qualquer boa razão, era assim (ponho só a última estrofe e, como sabemos que o gato é referido na primeira estrofe e se vai sempre acrescentando, em cada estrofe, um bicho aos da estrofe anterior, as outras deduzem-se dela):
Uma velha tinha um velho, debaixo da cama o tinha; o velho falava, o boi berrava, o burro zurrava, o porco roncava, o galo cantava, o cão ladrava, o gato miava, a velha dizia: «Só só, só só, só só duma banda só.»
É claro, a bicharada que se inclui é um bocado à vontade do freguês, e a lengalenga tem óbvios méritos didácticos, para ensinar as palavras que referem “vozes de animais”. Mais, aliás, do que um poema de Pedro Dinis, que havia num livro da minha escola primária, em que a informação era obviamente excessiva: 32 sons de bichos duma vez só!
Descobri agora, depois de uma pequena pesquisa na Internet, diversas variações à minha versão original. Por exemplo, em vez de apenas “só só, só só, só só duma banda só” podemos ter “estou só, estou só, estou só de uma banda só”, o que dá ao refrão um tom bastante mais grave. Outra variação menor que vi muda só em dó e diz assim:
A velha tinha um carneiro, debaixo da cama o tinha; o carneiro berrava, o galo cantava, o gato miava, o cão ladrava e a velha dizia: «Dó, dó, dó numa banda só.»
E também vos digo: se o só era bastante misterioso, o dó não o é menos… O que quererá isto dizer? E a banda, que banda será esta? Perguntas patetas, se assentarmos que o encanto das lengalengas é serem poesia pura, interessando pouco o que querem mesmo dizer… Agora, se repararem bem, nesta versão não se muda só o só para dó, aparece também um cão no fim da lengalenga. Podem pensar, então, que começa com um cão em vez de começar com um gato, mas não, o cão nunca aparece sozinho antes do gato – a primeira estrofe é: A velha que tinha um gato, debaixo da cama o tinha; o gato miava, o cão ladrava e a velha dizia: «Dó, dó, dó numa banda só.»
Outra coisa digna de nota é que, nesta versão se diz “a velha” e não “uma velha”. Parecendo que não, é estratégia estilística arrojada (muito moderna, diria eu, para uma coisa tradicional) a utilização de um artigo definido para introduzir uma velha que ninguém sabe quem é…
Mais bonita, na minha opinião, é outra variante da lengalenga que encontrei:
Uma velha tinha um gato, debaixo da cama o tinha; o gato miava, o pinto piava e a velha dizia: «Mil raivas vos persigam – que não vos posso aturar!»
Gosto muito da expressão “mil raivas vos persigam”, que me soa arcaica e que quero ver se não me esqueço de começar a utilizar no meu quotidiano, em vez de invocar descargas eléctricas… (Aliás, para praticar, já a comecei a utilizar neste texto, não sei se repararam, lá em cima no início do segundo parágrafo.)
Outra variante engraçada da lengalenga, mais complicada porque implica uma dupla enumeração de bichos e vozes, é a seguinte:
Era uma velha que tinha uma vaca e debaixo da cama a tinha; a vaca mugia, o burro zurrava, o porco roncava, o galo cantava, o cão ladrava, o gato miava e a velha dizia: «Mal haja o teu mugir, mal haja o teu zurrar, mal haja o teu roncar, mal haja o teu cantar, mal haja o teu ladrar, mal haja o teu miar, que não me deixam dormir nem tão pouco descansar.»
E mais sofisticada ainda – a mais sofisticada de todas as que encontrei – é esta outra versão que aqui trago, que acrescenta à anterior outra dupla enumeração, primeiro dos bichos e a seguir dos barulhos que eles fazem, e também uma solução violenta, como acontece muitas vezes em coisas ditas tradicionais:
E vê-se a velha obrigada a tomar a decisão: mata a vaca, mata o burro, mata o porco, mata o galo, mata o cão, mata o gato, e então dizia: «Acabou-se o teu mugir, acabou-se o teu zurrar, acabou-se o teu roncar, acabou-se o teu cantar, acabou-se o teu ladrar, acabou-se o teu miar, agora posso dormir, agora posso descansar.»
Percebo perfeitamente: uma pessoa sem dormir não pode viver e o dormir pouco torna-nos violentos, de modo que é natural (humano porque animal…) dar cabo, enraivecido, de meia dúzia de bichezas para poder enfim repousar... (A propósito, não terá contribuído para a diminuição da violência ao longo dos séculos o facto de as pessoas descansarem cada vez mais?)
E agora, para terminar (se bem que, de facto, tudo tenha começado aqui), deixo-vos a versão de Pierrot le Pan de Pan, que reza assim:
Uma velha tinha um velho e debaixo da cama o tinha; o velho assobiava, o xaile bailava, o cuco cucava, a galinha galinhava, a bengala bengalava, o penico penicava, o gato miava e a velha dizia: «Só só, só só, só só de uma banda só».
Uma velha teve uma trombose e em cima da cama a teve; ficou meio apanhada e paralisada só só, só só, só só de uma banda só.
Assim, sim, já faz o estribilho mais sentido, não é? Mas coitada da senhora!
3 comentários:
No cancioneiro popular brasileiro também temos nossa lengagenga (aqui poderíamos dizer, por influência do tupi, nhenhenhém). Ei-la:
A velha debaixo da cama
A véia, debaixo da cama
A véia criava um rato.
Na noite que se danava
O rato chiava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um gato.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um cachorro.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um veado.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um galo.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um macaco.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava,
O macaco pulava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um porco.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava,
O macaco pulava,
O porco fuçava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um bode.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava,
O macaco pulava,
O porco fuçava,
O bode berrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um jumento.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava,
O macaco pulava,
O porco fuçava,
O bode berrava,
O jumento rinchava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um leão.
Na noite que se danava
O rato chiava,
O gato miava,
O cachorro latia,
O veado corria,
O galo cantava,
O macaco pulava,
O porco fuçava,
O bode berrava,
O jumento rinchava,
O leão esturrava
E a véia dizia:
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava um véio.
Na noite que se danava
O véio queria
A véia não dava
Aí ficava
Naquela agonia.
Ai meu Deus se acaba tudo
Tanto bem que eu te queria.
A véia, debaixo da cama
A véia criava uma cobra.
A cobra mordeu o rato,
Mordeu o gato,
Mordeu o cachorro,
Mordeu o veado,
Mordeu o galo,
Mordeu o macaco,
Mordeu o porco,
Mordeu o bode,
Mordeu o jumento,
Mordeu o leão,
Mordeu o véio...
- Mordeu quem?
Mordeu o véio...
- Oh, meu Jesuis. E a véia?
Mordeu a véia...
- Também ela, meu fio? A veinha, foi?
E a véia ficou sem o véio, foi?
- Nesse caso foi, né.
Cadê a veinha?
- Morreu, bicho besta, morreu!
Ai meu Deus!
Hoje, à procura de uma imagem, surgiu o seguinte rabisco:
uma velha tinha um gato
digamos que amarelo
o amarelo era um gato pitoresco
com a particularidade de verbalizar
tudo o que se passava na extensão do seu corpo
endemoninhado
o amarelo falava ou miava muito
por tudo e por nada dizia uma piada
queixava-se do calor do frio fazia uma borrada
afiava o focinho e inconscientemente
as unhas no sofá da velha
todas as velhas são relativas
e os gatos mesmo que amarelos
muito subjectivos
por isso esta história só não é banal
pelos ouvidos da velha que muito ilúcidos
percebiam no miar uma espécie de cabala
contra o niilismo da sua existência
maravilhada pelo pormenor
de um som de uma visão de uma sensação
impossível de experimentar senão
pela velha
e p’lo gato
Ensinaram-me esta lengalenga quando eu era pequena. Era cantada e terminava assim «Mal o haja o teu mugir, o teu zurrar, o teu roncar, o teu cantar, o teu ladrar, o teu miar, que não me deixam dormir nem tão pouco descansar.»
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