17/02/10

Tipologias, interjeições e outras complicações

No texto “El idioma analítico de John Wilkins”, incluído em Otras inquisiciones, Jorge Luís Borges refere uma enciclopédia chinesa, o Empório celestial de conhecimentos benévolos, segundo a qual se poderia dividir os animais em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães soltos, h) incluídos n[aquela] classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de partir o jarrão e n) que de longe parecem moscas.

Parece evidente à maior parte das pessoas que é uma tipologia concebida para causar estranhamento no leitor e que é por isso que se alinham ao mesmo nível categorias em princípio sem relação entre elas. O que é interessante é que não é só nos devaneios literários borgianos que se encontram tipologias deste tipo. Quando, há muitos anos, analisei a Poética de Aristóteles para a reduzir a um quadro (é possível!), afigurou-se-me óbvio que a obra – um tratado muito influente em toda a reflexão ocidental sobre língua e literatura! –, está, às vezes, organizada com uma desorganização do mesmo tipo da da enciclopédia chinesa de Borges. Por exemplo: os mitos dividem-se, quanto às partes que os compõem, em catástrofe, peripécia e reconhecimento, e os reconhecimentos dividem-se em reconhecimento por sinais, reconhecimento urdido pelo poeta, reconhecimento pelo despertar da memória; reconhecimento que provém de um silogismo; ou reconhecimento combinado com um paralogismo [!].

Longe de mim querer discutir aqui Aristóteles ou propor regras para elaboração de tipologias. Isto é só uma introdução demasiado grande e talvez um bocadinho despropositada ao tema das interjeições. O que se encontra na maior parte das tipologias de classes gramaticais, desde a Wikipedia até à Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, é uma divisão em dez categorias de base, seis variáveis (substantivo, artigo, adjectivo, numeral, pronome, verbo) e quatro invariáveis (advérbio, preposição, conjunção e interjeição). A interjeição é, pois, normalmente considerada uma classe de palavras. Será... Mas, então, uma classe de palavras algo estranha, difícil de definir...

Se querem uma tipologia senão mais surrealista pelo menos tão ilógica (ou desorganizada, seja…) como a da enciclopédia chinesa de Borges, vejam a entrada "Interjeição" da Wikipédia. Fica-se aí a saber que “[a]s interjeições são palavras invariáveis que exprimem estados emocionais, ou mais abragentemente: sensações e estados de espírito; ou mesmo, servem como auxiliador expressivo para o interlocutor, já que permite a ele a adoção de um comportamento que pode dispensar estruturas linguísticas mais elaboradas”, o que, tirando estar assim escrito exactamente como aqui ponho [tudo sic, foi copy & paste...] não difere muito de outras definições de interjeição mais bem escritas.

Vejamos alguns dicionários. O Priberam online diz que interjeição é “voz, palavra ou locução que exprime com energia os afectos/afetos do ânimo”. O Porto Editora diz que interjeição é “vocábulo ou expressão de carácter sugestivo usada para traduzir um sentimento ou reacção súbita (dor, alegria, admiração, etc.), para dar uma ordem, para chamar a atenção ou ainda para imitar um som; exclamação”. O dicionário da Real Academia Espanhola define interjección como sendo uma “classe de palavras que exprime alguma impressão súbita ou um sentimento profundo, como assombro, surpresa, dor, arrelia, amor, etc. Serve também para apelar ao interlocutor, ou como fórmula de saudação, despedida, acordo, etc.; por exemplo, eh, olá”. Como se pode ver, a definição é muito semelhante à da Porto editora, com a vantagem de referir só palavras, não expressões nem locuções, e ter lá os exemplos de eh e olá no fim. Já o Oxford Concise define interjection apenas como “uma exclamação, especialmente como parte do discurso” (entendendo-se parte do discurso como “categoria morfossintáctica de base”, “classe de palavras”), que é uma definição muito mais elegante, mas, dos dois exemplos que dá, ah! e dear me!, é difícil aceitar que o segundo corresponda a um componente mínimo do discurso. Enfim… Já a definição de interjeição do Houaiss, que também me parece confusa, acrescenta uma coisa que acho importante e que sublinho: “palavra invariável ou sintagma que, com entoação particular, geralmente sem combinar-se gramaticalmente com elementos da oração, formam, por si sós, frases que exprimem uma emoção, uma sensação, uma ordem, um apelo, ou descrevem um ruído (p. ex. psiu!, oh!, coragem!, meu Deus!)”.

Essa ideia de que a interjeição é uma frase é partilhada por diversos autores (a minha casa aqui em Chimoio é um vazio de livros, terão de me desculpar, só posso citar o que consigo apanhar online, mas acho que chega…), como Mattoso Câmara, que, no seu Dicionário de Linguística e Gramática, afirma que a interjeição é uma “verdadeira palavra-frase, pela qual o falante, impregnado de emoção, procura exprimir o seu estado psíquico num momento súbito, em vez de se exprimir por uma frase logicamente organizada,” e Jean Dubois, que diz, no seu Dicionário de Linguística, que “[se chama] interjeição a uma palavra invariável, isolada, que forma uma frase por si mesma”. Aliás, até a tal confusa página "Interjeição" da Wikipedia reconhece, a certa altura, que “a interjeição é considerada palavra-frase, caracterizando-se como uma estrutura à parte” e que a interjeição “não desempenha função sintática”.

Na minha opinião, o que torna problemático encaixar a interjeição nas “classes de palavras” ou nas “categorias morfossintácticas” ou nas “partes do discurso” ou lá como queiram chamar aos componentes mínimos de frase é que, às vezes, parece de facto fazer mais sentido considerar uma interjeição uma frase completa (sintética, se se quiser, porque cristalizada ou truncada), mas, noutros casos, apenas um tipo de predicador. Uma amiga minha, professora de português, contou-me de um aluno, não sei se dela se de quem, que tinha certa vez defendido que ai era um verbo, porque se conjugava: ai de mim, ai de ti, ai dele, etc. É muito provável que a maior parte das pessoas ache cómica a afirmação, mas o facto é que o rapaz tinha uma intuição linguística apurada e estava muito próximo da verdade: numa frase como “ai de ti, se voltas a fazer isto!”, ai é claramente o núcleo de predicação da oração principal, ou seja, desempenha a função mais comummente desempenhada por um verbo!

Embora compreenda a dificuldade de classificação das interjeições, não posso aceitar que se misturem tanto os critérios classificatórios (ou que se misturem tantos critérios classificatórios…): se se define interjeição como classe de palavras, há que a definir através das suas propriedades morfossintáticas (invariabilidade ou não, posições sintácticas em que pode ocorrer, antes e depois de que outras classes, etc.); se se considera que o que conta para a definição de interjeição é o que ela exprime (emoções várias, ordem, encorajamento, etc. etc.), então interjeição é uma noção semântica (uma categoria modal?) e aí sim, podem facilmente pôr-se ao mesmo nível palavra isoladas e frases longas. O artigo "Interjeição" da Infopédia ([Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-02-15], para o citar como me indicam que devo) afirma que “[a] proposta trazida pela gramática tradicional de classificação das interjeições segundo a emoção por elas expressa aguarda revisão e esclarecimentos à luz da análise do discurso e da pragmática”; e eu acrescento que também à luz de uma proposta de classificação mais rigorosa das classes de palavras…

Digamos assim: Quando uma pessoa está mesmo aflita, como eu às vezes fico, ai, ai, ai, sem saber onde arrumar uma palavra, paciência, aceita-se que lance mão da pasta de arquivo interjeição. Não me choca que se classifiquem assim um Hmmm... ou um Eh, eh, eh! Também não me satisfaz, mas enfim, na falta de melhor… Que se classifique assim algum uso específico e relativamente anómalo de palavras com outra classificação morfossintáctica, como Bem... Ou Bolas!, eis outra coisa que eu também, na falta de melhor, não só aceito como chego a praticar. Mas que não se exagere, ok?, porque se se cair em definições como uma da Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, segundo a qual as interjeições são “uma espécie de grito com que traduzimos de modo vivo as nossas emoções”; se se seguir a lógica que faz classificar “silêncio!” como interjeição; e se se admitir, como há muito quem faça, a existência de locuções interjectivas, eh pá, acabamos por encaixar na categoria uma expressão como “Valha-me Santo Euplúsio de Catânia e mai-los santinhos todos dos céus, então mas eu fiz algum mal a alguém para estar agora a levar com isto, não querem lá ver?”.

Interjeição? Pois, eu percebo… mais ou menos, mais ou menos..., onde se quer chegar. Mas não sei o que é…Uma coisa é certa (agora para terminar mais ou menos onde comecei): embora a pouco rigorosa classificação tradicional das classes de palavras tenha na Poética de Aristóteles uma das suas origens principais, precisamente, pelo menos a ele ninguém o pode acusar de ter incluído as interjeições nas “classes gramaticais”, já que, para ele, as “partes” em que se divide a “elocução” são: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, artigo, flexão e proposição. Mais uma tipologia muito estranha, mas de que não fazem parte nem as interjeições nem os advérbios, que são outra categoria polémica, se não claramente abusada… Mas os advérbios ficam para outro dia.

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