1. Tínhamos, quando morávamos na Dinamarca, uma vizinha que, por causa de uma crença que ela lá tinha, não vacinava as filhas. «E então?» Muita gente achará que não há problema nenhum em permitir que quem não queira vacinar os filhos não o faça. No caso concreto que refiro, não havia, em princípio, grande problema, porque todas as outras crianças com quem as filhas da tal senhora contactavam estavam imunizadas. A questão é que, havendo apenas uma percentagem pequena de crianças não imunizadas contra uma determinada doença, essas crianças não a apanham porque ela não existe no meio. Estão a receber uma “vacina indirecta”, digamos assim, a apanhar uma boleia. Mas, e se houvesse muita gente que, como ela, em nome das suas convicções, e com base no seu diz que inalienável direito a decidir sobre a sua própria vida (que inclui, neste caso, outras vidas), não vacinasse os filhos? Bom, se as crianças não vacinadas ultrapassarem uma determinada percentagem, começa a haver um risco grande de que todas apanhem a doença. Trata-se aqui da velha discussão (complicada, mas das mais interessantes que há, na minha opinião) do equilíbrio, ou das fronteiras, se quiserem, entre a liberdade individual e a liberdade do grupo. Quando a liberdade individual de uns pode resultar numa privação da liberdade de outros, o colectivo tem ou não direito a impor as vacinas aos que não querem ser vacinados? E é preciso ser maioria para o fazer? Aceita-se que, por hipótese, 60% de pessoas que não querem vacinar os filhos imponham o risco de doença aos filhos dos 40% restantes?
2. “Aceitem, por favor, a minha demissão. Não quero pertencer a um clube que me aceite como sócio.” A frase de Groucho Marx é famosa, se calhar por ser tão ambígua, mas a discussão que mais interessa, e que está relacionada com a questão anterior, não é se devemos aceitar ser sócios dos clubes que nos querem como sócios, mas antes se devemos ou não ser sócios dos clubes que nos querem obrigar a ser sócios; ou, dito doutra maneira, se se pode obrigar alguém a fazer parte de um clube. Creio que, de acordo com o espírito dos tempos, é relativamente fácil, para a maior parte das pessoas, aceitar, como eu, em abstracto, o aceito, que não se deve obrigar ninguém a fazer parte de nenhum clube, mesmo que o clube seja uma associação de classe. Há, inclusive, decisões de tribunais, nacionais e internacionais contra a prática, relativamente normal em certos países de, seguindo acordos formais ou informais entre patronato e sindicatos, fazer depender a contratação dos trabalhadores da adesão ao sindicato único ou ao sindicato que tenha o monopólio da negociação com o empregador. Mas continua a haver gente que não concorda com o princípio; e a questão, que parece simples à primeira vista, é de facto mais complicada do que parece, sobretudo porque, por exemplo no caso dos sindicatos ou de outras organizações de defesa de interesses de colectivos, os benefícios que essas associações conseguem são sempre para as todas pessoas que fazem parte desses colectivos, queiram ou não fazer parte da associação, sejam efectivamente membros dela ou não…
3. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação? Bom, há uma excepção fundamental que a esmagadora maioria – se não a totalidade – das pessoas aceita sem protestar: ser cidadão de uma nação. E quando vejo as posições radicais de muitos ultraliberais, surpreendo-me que nunca cheguem ao ponto de propor que deva ser cada um a decidir se quer ou não ser cidadão do país. É curioso, parece que nunca chega aí a defesa da liberdade individual de escolha. Até à recusa da obrigatoriedade das vacinas, não sei, mas é provável que sim; até à recusa da obrigatoriedade de pertencer a sindicatos, de certeza absoluta; mas até à recusa da obrigatoriedade de cidadania, acho que não. Ora quem considera a liberdade individual um valor de base, o valor de base, não deveria propor que cada pessoa possa escolher o Estado que mais jeito lhe dê?…
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