[Prometi que nunca mais aqui falava de literatura e tenciono cumprir. Por isso, a quem pareça este texto fala (também) de literatura, quero esclarecer que não – é só de feijões que fala!]
Rudyard Kipling pode ter muitos defeitos, ninguém o nega, mas dois defeitos que não tem são o de não saber transformar conhecimento e imaginação em histórias interessantes (Kim continua a ser um dos meus romances preferidos, apesar do seu tão criticado fundo ideológico de elogio do império britânico) e o de não saber escrever. Vejam, por exemplo, como começa o conto “The finest story in the world” (traduzo eu, por falta de o encontrar traduzido):
Chamava-se Charlie Mears; era filho único da sua mãe, que era viúva, e vivia na parte norte de Londres, deslocando-se todos os dias ao centro da cidade para aí trabalhar num banco. Tinha vinte anos e sofria de aspirações. Conheci-o num salão de bilhares, onde o marcador o tratava pelo nome próprio e ele tratava o marcador por Olho-de-boi. Charlie explicou, com algum nervosismo, que tinha ali vindo só para ver, e, como ficar só a ver jogos de habilidade não é um divertimento barato para jovens, sugeri a Charlie que voltasse para casa da mãe.
Não sei se, em português, se chamaria (ou se chama) marcador ao homem encarregado de ir marcando num quadro os resultados dos jogos (marker), mas isso é o menos. O estilo de Kipling é tão admiravelmente escorreito que constitui exemplo perfeito da arte e preceito de escrever com jeito, como diria um rapaz que eu conhecia… A história, bom, não a vou contar agora aqui, mas há uma altura em que nela aparecem galés gregas e se refere a comida dos remadores: “rotten figs and black beans and wine in a skin bag”. Quando li a passagem, compreendi que black beans eram feijão preto e o feijão preto estragou-me a leitura: “Feijão preto, os remadores das galés gregas da Antiguidade? Mas como pode ser isso?” É que aquilo a que eu chamo feijão preto (e que é, muito provavelmente, também aquilo a que os meus leitores chamam feijão preto) é uma variedade de Phaseolus vulgaris* e, esses legumes americanos, não os podem ter conhecido os gregos antigos! Tinha acreditado notar o mesmo anacronismo em The Pope’s Rhinoceros, de Lawrence Norfolk, onde se comem também feijões nas tabernas da Itália, na segunda década do século XVI… Um descuido do autor? Era possível, até porque Lawrence Norfolk parece não dar muita importância a esses pormenores**. Mas não podia ser, pensei eu depois, Norfolk e Kipling não se iam enganar numa coisa assim! A questão tinha se ser outra: a que chamarão eles beans?
No romance de Norfolk, os beans podiam ser favas ou algum de vários tipos de leguminosas secas do Velho Mundo, entre grão-de-bico e lentilhas… E o mesmo no conto de Kipling – só faz confusão o serem pretos… Bom, não podiam ser aquilo a que eu e os meus leitores chamamos feijão preto, mas parece que havia mesmo feijões pretos na Grécia Antiga, se nos fiarmos na entrada "Feijão" da Wikipédia em português: «Há referências [ao feijão] na Grécia antiga e no Império romano, onde feijões eram utilizados para votar: um feijão branco significava sim, e um feijão preto significava não». E nem é preciso sair da Wikipedia (basta dar um salto à entrada "Haricot" da Wikipédia em francês) para ficar a saber que os feijões anteriores ao feijão das Américas (o phaseolus grego e os legumes designados pelos nomes dele derivados) eram o feijão-frade, pois então, Vigna unguiculata, e a ervilhaca, Vicia sativa. Que são também beans em inglês, porque beans são muitas leguminosas e não apenas feijões em sentido estrito… Aliás, a confusão, no domínio de feijões e afins é grande. Se o português distingue claramente feijões de favas, por exemplo, nem todas as línguas o fazem, e há até línguas ou variantes dialectais onde é a fava que designa o feijão: as fabes asturianas e as fèves quebequenses são feijão, não são favas…
Está tudo muito bem, aprendi alguma coisa sobre feijões e sobre a minha maldita mania de querer encontrar erros onde os não há. Mas, e os feijões pretos das votações da Antiguidade clássica e da pouca apetitosa dieta dos remadores das galés, o que eram, afinal?
____________________
* Sabiam que feijão preto, feijão manteiga, feijão encarnado, feijão catarino, feijão manteiga e etc., esses feijões todos, são variedades diferentes de uma mesma espécie?
** Norfolk diz que, quando os tradutores lhe apontam “erros” desse tipo, se sente tentado a não responder. (Por exemplo, «a carruagem virou à esquerda antes de chegar ao Marché des Innocents, como para atravessar o rio pelo Pont ....... Tem a certeza de que foi à esquerda que virou e não à direita?» ou «Como pode o enxofre da Caltanisetta (Sicília) vir do Cagliare na Sardenha?»)
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
7 comentários:
Olá!
Estava eu a procurar a transcrição fonética de rhinoceros quando o Google me trouxe aqui.
Pelo passar de olhos que dei, achei muito interessante e adoraria trocar ideias (com acento ou sem? risos)
Sou brasileira e sofredora por opção.
"Salvem a professorinha", como diria o Caco Antibes do extinto "Sai de baixo"; conhecetes?
At.te,
Renata
Cara Renata,
Gosto sempre de trocar ideias, com ou sem acento. Mas querias trocar ideias sobre quê?
O Sai de baixo e o Caco Antibes, não conhecia, porque nunca vejo televisão. Agora temos televisão em casa há cerca de três anos, desde que voltámos à Dinamarca, mas é a primeira vez desde o início dos anos 90 em Lisboa - foram uns bons 20 anos sem televisão. Mas estive a ver uns bocadinhos da série no YouTube e achei muito bom. Fico então a saber que se perdem também coisas boas por não ver televisão.
Muitos cumprimentos,
Vítor
Olá,novamente!
Gostaria de conversar sobre variações linguísticas que exercem em fascínio e estranheza, simultaneamente. Relembrando o saudoso Rubem Alves que ficou muito bravo quando retiraram da Língua Portuguesa "estória" que fazia parte do título de uma de sua obras.
Para mim,"história" é sisuda e sem encanto. As reformas criam feridas e empobrecimento da Língua por vezes.
O que achas?
At.te,
Renata
Acho que não se podem pôr as coisas dessa maneira. Não sei o que aconteceu à estória de Rubem Alves, mas a palavra estória não desapareceu de modo algum da língua portuguesa, nem se pode fazer desaparecer palavras da língua. Há palavras que deixam de ser utilizadas, com o tempo, o que é diferente de desaparecerem, mas não é esse o caso da palavra estória, que continua a ser usada por muita gente. No que ao meu dialeto se aplica, estória e história são apenas duas grafias divergentes de uma mesma palavra, não sei se haverá dialetos em que existam de facto duas formas diferentes. Não acho história sisuda e sem encanto, mas é, provavelmente, porque não estou habituado a fazer das palavras esse tipo de julgamento. Não conheço reformas da língua, nem imagino o que isso poderia ser, por isso não posso pronunciar-me sobre se criam empobrecimento ou não. Só conheço reformas da ortografia, que não alteram em nada a língua a não ser na maneira convencional como ela se transcreve na escrita. E não me parece que faça muito sentido falar de empobrecimento gráfico, mas sei que há pessoas que têm essa perceção.
Caro Vítor,
Retirei do blog do Rubem Alves parte da indignação que teve quando a grafia "estória" caiu em desuso aqui.
"Por causa da palavra “estória” já tive várias querelas com revisores. Eles, instruídos pelos gramáticos, não aceitam a palavra “estória” e a corrigem para “história”... Não conheço gramático que tenha sido escritor”.
At.te,
Renata
É um problema de grafia, então. Muitos revisores são assim rígidos, mas também é preciso compreender que o trabalho dos revisores, mesmo quando não são conservadores, é aplicar uma regra, se ela existir. É nessa tensão que as coisas da língua escrita se passam: a ânsia de regulamentação de gramáticos (e revisores) e a emotividades e criatividade do escritor. O olhar do linguista (que é o olhar que eu quero ter) é muito diferente: olha para o que acontece de facto (e não só na escrita, que é um universo muito restrito) e analisa e tenta compreender. Se procura regras, não são as de como deve ser, mas de como é de facto, as regras que, sem consciência de as terem, têm na mente os falantes da língua. Tirando isso, a história da palavra história é interessante: a grafia estória usava-se como variante de história nos tempos em que não havia grande normalização ortográfica, depois desapareceu e voltou a surgir no século XX com um significado diferente de história. Em Portugal nunca foi aceite. No Brasil, passou a fazer parte da linguagem coloquial e, nalguns casos, da linguagem culta, parece que acabando por prevalecer a ideia de que não devia ser aceite como parte da norma. Noutros lugares, como em Moçambique, a questão não se pôs e, por exemplo, Mia Couto, para citar um caso que conheço, usa-a muitas vezes. Eu acho que Rubem Alves, como autor, tem direito a decidir que palavras quer usar e como se devem escrever. A função dos revisores é normalizar, quando o autor aceita a normalização, mas não devem impor ao autor o que ele, em plena consciência, não quer. É isto que eu acho, Renata.
Caro, Vítor:
Envio-lhe esta sobre a mesma questão (detalhe: estória sempre aparece grifado em vermelho pelo Word...
Sérgio Rodrigues
Sobre Palavras
27/01/2011
História x estória, um conflito histórico
“Oi, Sérgio! Qual sua posição sobre o uso de história x estória? Sei que as duas palavras existem, o Volp aceita ambas igualmente, mas o Aurélio (de antes e depois da reforma) recomenda apenas o uso de ‘história’, tanto para ciência histórica quanto para ficção. Pesquisando na internet, nenhuma outra fonte faz essa recomendação. Trabalho como revisora e tive problemas com isso hoje.” (Licia Matos)
É muito interessante a questão trazida por Licia. Antes de mais nada, minha posição pessoal: nessa eu fico com o Aurélio e com os portugueses. Como quase todos os escritores de qualquer época que conheço, uso apenas história, acho mesmo que nunca escrevi a palavra estória até este exato momento – pelo menos não que me recorde. Por quê? Algo a ver com velhas recomendações de professores, provavelmente, mas nesse caso nunca vi motivos para me rebelar contra eles e abraçar esse brasileirismo de jeitão anglófilo. A verdade é que a fronteira entre história real (história) e história inventada (estória) me parece fluida demais para tornar funcional a adoção de dois vocábulos. Todo mundo sabe – ou deveria saber – que a história, bem espremida, é cheia de “estórias”. E vice-versa. Acho mais inteligente deixar a distinção a cargo do contexto.
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