07/07/10

Do mundo como maquete

Uma conversa do meu amigo Stefaan Dondeyne, ontem de manhã:
O motorista do projecto é baptista e, por isso, é contra a circuncisão. “Deus não é bruto”, diz ele. “Se Deus quisesse que nós fôssemos de outra maneira, tinha-nos feito doutra maneira”. Eu podia ter argumentado que, seguindo essa lógica, não devíamos cortar cabelo nem barba, e nem as unhas sequer. Mas disse-lhe antes assim: “Se Deus não é bruto, como qualquer engenheiro inteligente, deve feito primeiro um protótipo, uma versão experimental, do mundo que ia criar. Como é que você sabe que este mundo em que nós vivemos não é uma primeira experiência de Deus e que depois de avaliar como isto funciona e corrigir os eventuais defeitos é que Ele há-de proceder à criação definitiva?” É isto que eu penso, que este mundo não pode ser senão uma versão experimental...

Louvor do futebol e do resto

Tenho um amigo que diz que, se se dedicasse à política metade do tempo, da atenção, do empenho, enfim, que se dedica ao futebol, o mundo havia de ser um lugar melhor para se viver. Não é que eu acredite numa coisa assim, mas percebo, acho que toda a gente percebe, o que ele quer dizer com isso – que o futebol é altamente sobrevalorizado relativamente a outras actividades humanas tão meritórias como ele…

Notem que eu escrevi “a outras actividades humanas tão meritórias como ele”. Quero assim deixar claro que, ao contrário do que possa dar a entender o facto de iniciar o texto com a citação antifutebolística do meu amigo, reconheço mérito ao futebol. Ao futebol e a outras actividades normalmente consideradas físicas, como se se pudesse assim fazer uma distinção clara entre o físico e o intelectual. E acho também importante que se chame a atenção, como Alun Anderson, no seu texto “Brains cannot become minds without bodies”, para a armadilha da sobrevalorização da inteligência abstracta – ainda mais, como função, por assim dizer, incorpórea (traduzo eu):
Uma imagem comum para se dar popularmente conta da "Mente" é um cérebro numa campânula de vidro. A mensagem é que dentro dessa massa desincorporada de tecido neural está tudo o que nós somos.
É uma imagem medonha, mas enganadora. Uma ideia bem mais arrojada é que os cérebros não podem tornar-se mentes sem corpos, que são cruciais para o pensamento e para a saúde as interacções biunívocas entre mente e corpo, e que o cérebro pode, em parte, pensar em termos de acções motrizes que codifica para os músculos do corpo realizarem.
Provavelmente, engraçámos com cérebros sem corpos por causa da tendência académica de adular o pensamento abstracto. Se, numa perspectiva mais democrática, encararmos o cérebro no seu todo, veremos que é bem mais usado para planificar e controlar movimento do que para reflectir. Os jornalistas desportivos têm razão ao descreverem as estrelas de futebol ou de basebol como “génios”! O génio destes desportistas exige uma enorme capacidade cerebral e um corpo soberbo, que é capaz de ser uma coisa mais do que tinha Einstein.
É, pois, um enorme desenvolvimento de capacidades fundamentais que se celebra num campo de futebol, disso não há dúvida; de capacidades tão fundamentais como muitas outras para chegarmos, como espécie, onde chegámos.

Agora, há outras capacidades humanas que também são, enfim, bastante dignas de celebração e que ninguém celebra, de maneira que eu percebo onde quer chegar aquele amigo que eu citava no início deste texto – que o futebol é altamente sobrevalorizado relativamente a outras actividades humanas tão meritórias como ele*…Podia haver, por exemplo, estádios cheios de pessoas a assistir a concursos de arrumar caixotes dentro de camiões – conseguir organizar com destreza volumes no espaço é, com certeza, outra capacidade fundamental da espécie…

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* Sim, eu sei que é a segunda vez que escrevo isto no texto. É de propósito.

Fazer, deixar de fazer e deixar fazer: uma discussão demasiado breve dos limites da responsabilidade de cada um

Um dia, escreveu um amigo meu no Facebook: «“Não somos responsáveis apenas pelo que fazemos, mas também pelo que deixamos de fazer.” Molière».

«É um bom tema de discussão», comentei eu. O resto do meu comentário era, infelizmente, despropositado:

«Em princípio, não – somos apenas responsáveis pelo que fazemos. Há situações em que temos o dever de agir para tentar impedir certas acções alheias e podemos ser responsabilizados se não o fizermos; mas são situações muito específicas e isto tem de ser discutido caso a caso. Agora, se entendermos a frase como recusa geral do direito à abstenção de acção, não concordo. Por outro lado, é muitas vezes nosso dever deixar fazer coisas com que não concordamos (se a opinião da maioria for contrária à nossa, por exemplo) e pelas quais não podemos ser responsabilizados.»

Não sei se se compreende, à leitura do comentário, por que razão é despropositado. É porque eu li mal a frase. O meu comentário era a uma outra frase, que eu li mas não estava lá: “Não somos responsáveis apenas pelo que fazemos, mas também pelo que deixamos fazer”. Não li o de entre deixamos e fazer e comentei outra ideia – outra ideia que é também um bom tema de discussão. Na minha opinião, aliás, a frase que eu li mas que o meu amigo não escreveu é até melhor tema de discussão do que a frase que ele escreveu – passo a discutir as duas [nota 1].

“Não somos responsáveis apenas pelo que fazemos, mas também pelo que deixamos de fazer”.

Encontrei a mesma ideia da frase de Molière nas actas de uma convenção metodista, onde podemos ler que B. I. Ives afirmou que “devemos ser responsabilizados não só pelo que fazemos, mas também pelo que podíamos ter feito e não fizemos” (“And we shall be held responsible not only for what we do, but also for what we might have done but did not”, New York State Methodist Convention, New York: Carlton & Lanahan, 1870). A ser tomada a frase à letra, “o que deixamos de fazer” ou “o que podíamos ter feito e não fizemos” é demasiado vasto para poder ser tido em conta e a proposta é, portanto, sem interesse. Além disso, a frase contém possibilidades de interpretação tão estapafúrdias como “devemos ser responsabilizados não só pelo que fazemos, mas também pelo mal que podíamos ter feito e não fizemos”. Admitamos, pois, que, ultrapassando uma falta de rigor na formulação, o que se quer de facto dizer com a frase (estou convencido de que é isso que acontece) é “não somos responsáveis apenas pelo mal que fazemos, mas também por não termos feito o bem que podíamos ter feito e não fizemos” [nota 2].

Ainda assim, não posso concordar com ela, porque ela implica que, para além de não termos direito a fazer mal, temos ainda o dever de fazer bem. A questão é complexa. «Na velha discussão sobre se é preferível postular-se que se deve fazer aos outros o que queremos que nos façam ou defender-se antes que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos façam, não tenho dúvidas em optar pelo último princípio. «Nem o Mal é um direito, nem o Bem é um dever», eis a formulação que faz Alexandre O’Neill desse princípio», escrevi eu aqui uma vez. Parece-me que a definição pela negativa dos preceitos morais, o enfoque na proibição, tem a vantagem de preservar a liberdade fundamental dos indivíduos, porque o enfoque no dever, na missão, em sentido lato, assenta sempre na perspectiva de quem age e não daquele sobre quem se age, o que pode facilmente resultar na imposição do “bom” agente ao “beneficiário” da “boa” acção.

“Não somos responsáveis apenas pelo que fazemos, mas também pelo que deixamos fazer”.

Esta ideia aparece diversas vezes em Google, atribuída a um J. Müller [nota 3]. Um aforismo com uma formulação semelhante, e com o mesmo significado, ao que eu entendo, é do célebre biólogo e filósofo australiano Peter Singer: “Somos responsáveis não só pelo que fazemos, mas também pelo que podíamos ter impedido” (“We are responsible not only for what we do but also for what we could have prevented”, Writings on an Ethical Life, London: Fourth Estate, 2001).

É uma ideia muito mais focalizada do que a discutida antes, porque limita o dever de acção a impedir o mal. Em princípio, a argumentação usada para refutar o dever de acção continua a ser válida quando se trata de impedir o mal, mas, em certas situações concretas, é difícil não defender esse dever de acção. Um exemplo simples: imaginemos que eu vejo dois miúdos a maltratar um terceiro. O bom senso compele-me a intervir, a tentar interromper a agressão e a apurar as suas causas. Estou convencido de que a maior parte das pessoas consideraria que é proceder mal ignorar completamente a situação.

A grande questão é saber onde acaba esse dever de intervenção. Há muitas situações da vida real em que o ater-se ao princípio de impedir o que se considera mal pode ter um leque enorme de consequência negativas para quem o seguir, desde um enorme esforço até ao risco da própria vida ou das vida dos seus. Pensem, só por exemplo, em lugares onde as pessoas são constantemente testemunhos de fraudes, desvios e casos de corrupção, aos mais diversos níveis. Têm obrigação de intervir de cada vez isso acontece? É impensável defender uma coisa assim. Não se pode exigir a ninguém que intervenha de cada vez que o seu chefe está a usar o carro da firma para negócios pessoais, ou de cada vez que a polícia está a mandar parar os transportes colectivos semiformais para lhes extorquir dinheiro. Onde começa então o dever? Depende apenas dos efeitos negativos para quem intervém ou também da gravidade prevista do mal a contrariar? Tem-se obrigação de agir, contanto que…
…a intervenção não ponha em causa a integridade física de quem intervém?
… a intervenção não ponha em causa a integridade física de ninguém?
… a intervenção não ponha em causa a liberdade de quem intervém?
… a intervenção não cause nenhum tipo de prejuízo a quem intervém?
… o mal evitado seja maior do que as consequências negativas da intervenção para quem intervém?

Todos os critérios em que consigo pensar me parecem insatisfatórios para se poder formular claramente um princípio ético de dever de intervenção para (tentar) impedir o mal. Pode-se, é claro, louvar essa intervenção, se ela acontecer. Mas que uma acção seja louvável não implica que ela seja exigível e que, portanto, alguém seja responsabilizado por não a ter praticado.

Uma reflexão que vem colada a esta é a reflexão sobre o heroísmo. Todos fomos educados para adular não só heróis concretos como o próprio heroísmo, mas, a meu ver, há que repensar não só esse pilar da nossa mentalidade como muitos actos motivados pelas melhores intenções. Num miniconto que escrevi uma vez (e que faz parte de Faz de Conta que Histórias, uma recolha de nove contos meus que sai no início de Setembro), invento uma reacção em tudo sensata, se bem que inesperada para muita gente, a um muito louvado acto de heroísmo real. O acto de heroísmo real é este: Numa estação de metro de Nova Iorque, Wesley Autrey, que espera o metro com as suas duas filas, vê um rapaz jovem ter um ataque. Vai ajudá-lo, mas, numa convulsão inesperada, o rapaz cai para a linha. O metro já lá vem. Wesley salta para a linha, consegue imobilizar o rapaz, com o peso do seu corpo, entre os carris do comboio e o comboio passa-lhe por cima. Wesley torna-se rapidamente um herói. A reacção sensata que eu inventei é a da mãe das duas filhas de Wesley: Quando a nossa morte não nos afecta senão a nós, que disponhamos da nossa vida como quisermos! Agora tu, como é que podes arriscar a vida por um gajo que tu não conheces de lado nenhum, sem pensares que tens duas filhas que precisam de ti? Tu só pensaste em ser abnegado, nobre e corajoso. Mais nada. Como é que se respeita alguém que, em vez de pensar nos que lhe são próximos e dele dependem, pensa apenas em ser abnegado, nobre e corajoso? A verdade é esta: fizeste algo que muito poucos fariam e que ninguém devia fazer.»

E então? Pode alguém presente na estação ser responsabilizado por não tentar salvar da morte o jovem epiléptico? Muito provavelmente, a maior parte das pessoas que vierem a ler isto achará, como eu, que não, que não pode. Mas então, insisto eu, entre não acudir ao miúdo que é agredido por outros dois miúdos e não acudir ao epiléptico que caiu para os carris do metro com o comboio já à vista, quais são as ausências de acção pelas quais devemos ser responsabilizados?

Note-se que as minhas perguntas não são perguntas retóricas, mas antes questões que gostava mesmo que me ajudassem a resolver. Considero o direito à não-acção um direito fundamental, mas posso mudar de opinião se vir definidos de forma clara os limites do dever de acção.

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P.S. 1: Um dos comentários à frase de Molière no Facebook referia o ditado “tão ladrão é o que rouba, como o que fica a ver”, mas trata-se aqui de outra discussão completamente diferente. O provérbio usa-se para referir a cumplicidade, não a ausência de acção para impedir o roubo. Mal feito fora que fôssemos responsabilizáveis por assistir a um roubo… Agora, os roubos dão, precisamente, matéria útil para repensar os limites do dever de intervenção para impedir o mal – em que condições é que um espectador de um roubo tem obrigação de intervir para o impedir? E que aspectos devem ser tidos em conta para determinar os limites desse dever de intervenção – aspectos inerentes ao roubo, aos ladrões ou aos espectadores? Ou todos?

P.S. 2: Evidentemente, podemos imaginar propostas morais alternativas às duas que refiro na primeira parte do texto. Por exemplo, um princípio moral que não seja nem “não faças aos outros o que não queres que te façam” nem “faz aos outros o que queres que te façam”, mas antes “faz aos outros o que eles querem que lhes faças”. Pode até parecer que temos nesse princípio a resposta à questão dos limites do dever de intervenção: tenho o dever de intervir quando essa intervenção me for solicitada por aqueles a favor de quem intervenho. Mas não funciona. Continuo a ter de estabelecer (mas como?) critérios claros de quando essa solicitação é justa, porque é perfeitamente possível que ela constitua um abuso, voluntário ou não. Pode-se ainda pensar numa solução de compromisso, em que o critério de validação do dever de intervenção não é a intervenção ser solicitada, mas sim ser explicitamente aceite. Infelizmente, continua a ser um critério pouco funcional, porque, por um lado, em muitas das situações onde poderá haver dever de intervenção (segundo os que o defendem, claro), não há possibilidade de consultar aqueles em quem a intervenção tem impacto; e porque, por outro lado, a própria consulta pode ter um efeito persuasivo ou de outra forma influenciar ou distorcer as respostas que nela se obtêm (uma questão muito discutida, por exemplo, na cooperação para o desenvolvimento).

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Nota 1: “Um momento!”, interrompe-me o meu leitor ideal (ou, pelo menos idealizado).“A frase que o teu amigo escreveu não, a frase que Molière escreveu. O teu amigo limitou-se a citar Molière.” Muito bem, comecemos por aí. Foi assim, aliás, que me dei conta de que tinha lido mal a frase, na pesquisa que fiz para confirmar que a frase era de facto de Molière. “Vão labor, senão mesmo labor de vaidade”, comentará o mesmo leitor de há bocado, “vale a ideia mais ou menos conforme quem a tem ou quem a diz?” Não, é verdade que não, mas importa o rigor, não se deve andar a pôr na boca das pessoas o que nunca lá esteve. Mais vale então não afirmar autoria. Encontrei apenas três citações da frase em francês atribuindo-a a Molière: « Nous ne sommes pas seulement responsables de ce que nous faisons, mais aussi de ce que nous ne faisons pas »). Em textos com uma relativa credibilidade, pareceu-me, mas onde não se indicava concretamente em que texto de Molière aparece a frase. E três citações em francês em Google, sem indicação concreta da fonte, não são suficientes para eu aceitar sem mais dúvidas de que a frase é mesmo de Molière. Já se procurarmos a frase em português tal e qual o meu amigo a publicou no Facebook, são muitas as ocorrências. E porque se havia de citar mais em português um aforismo de Molière do que em francês? Tudo isto é muito estranho. Agora, por razões de facilidade de referência, assumo, no corpo do texto, que a frase tem a autoria que lhe atribuída.

Nota 2: O meu amigo que pôs a frase no Facebook comentava que «o "deixar de fazer" uma coisa também é uma acção ou atitude e, nessa medida, seremos responsáveis pela consequência que daí resulte». Estou convencido de que ele faz da frase a interpretação restritiva que aqui refiro. Se, nesta interpretação restritiva, já é discutível que o deixar de fazer seja uma acção, numa interpretação mais aberta da frase (mais literal, de facto) então não se pode mesmo postular que uma não-acção é um tipo de acção – de facto, o número das nossas não-acções (das acções que deixamos de realizar) é simplesmente infinito, mesmo que se refira apenas o que podíamos ter feito – eu não estudei química nem matei ninguém à machadada, embora pudesse ter feito ambas as coisas.

Nota 3: A ser o autor da frase uma figura conhecida, deve tratar-se de Hermann Joseph Müller, prémio Nobel de Medicina em 1946, ou do político alemão Josef Müller, que pertenceu à resistência contra os nazis, esteve preso num campo de concentração e foi um dos fundadores do partido CSU. Interessante coincidência: a frase que eu li na que se diz ser de Molière aparece (sobretudo em sites franceses, ademais!) como sendo de Müller, que é um nome bastante parecido com Molière…