A expressão ir de embute é muito antiga. Sempre a conheci, o meu pai conhecia-a e não me espantaria nada que o pai dele a tivesse conhecido também. Ouvi-a milhares de vezes, continuo a ouvi-la diariamente quando vou a Portugal e há dela centenas de ocorrências em Google. Aliás, é uma expressão tão comum que me surpreende que Helder Guégués a não conhecesse há mais tempo – diz-nos que só agora a ouviu pela primeira vez, numa crónica de João Gobern. E pergunta: de onde virá tal expressão?
Antes de tentar esboçar uma resposta a essa pergunta (é esse o principal propósito deste texto), deixem-me indignar-me: o facto de não estar dicionarizada uma expressão como ir de embute prova mais uma vez o que já estamos fartos de saber: que os dicionários registam com prazer qualquer termo que algum escritor reconhecido tenha inventado um dia e usado uma vez ou duas (e de que, por conseguinte, não se pode dizer que faz realmente parte da língua), mas não registam o português real que milhares dos seus falantes nativos usam constantemente no seu dia-a-dia. Ou seja, decidem eles o que é português e o que não é, como se fosse essa a sua função e tivessem competência para tal… E o calão, bom, mais que qualquer outra variedade, «os lexicógrafos remetem[-no], se lhes vem ao gadanho, ao cemitério da língua», como constatava o mestre Aquilino Ribeiro, em tom de óbvia crítica a essa tentativa de varrer para debaixo do tapete as variantes dialectais e sociolectais menos prezadas pelos poderosos do idioma. Mas adiante:
Também já me interroguei várias vezes sobre a origem de ir de embute. E ensaio agora aqui não uma resposta definitiva, concludente, mas apenas uma reflexão ligeira, como quem pensa alto, que vale o que vale, como se costuma dizer, na falta de provas concludentes…
Ir de embute está com certeza relacionado com bute, “pé”, disso não creio que possa haver muitas dúvidas. Mas como? Não me parece disparatado propor que ir de embute venha directamente de bute e é essa a ideia que desenvolverei a seguir. E então, para não meter os pés pelas mãos, se me desculpam o trocadilho de evidente mau gosto, convém falar um pouco dos butes antes de propor alguma explicação de como deles se chega a ir de embute.
Hoje em dia, a palavra bute usa-se sobretudo de quatro maneiras, ao que sei: i) na expressão meter os butes em [algum lado], que significa “estar em [algum lado]/ir a [algum lado]”, e que é usada quase exclusivamente como item de polaridade negativa – “nunca lá meti os butes” significa “nunca lá fui / nunca lá estive”; ii) na expressão ir/andar a butes, “ir/andar a pé”; iii) nas expressões dar/levar com os butes, “recusar alguém, terminar uma relação amorosa”/“ser recusado numa relação amorosa”; e iv), sozinha, como interjeição, com o significado de “vamos!” O meu dicionário Porto Editora de 2004 reconhece a palavra, que diz vir do inglês boot. O mesmo propõem o Dicionário da Academia das Ciências, de 2001, e o Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha (2ª ed., 1996), que diz ainda que o primeiro registo conhecido do termo é de 1899[1].
Falta-nos saber, porém, como se chega de bute a ir de embute. À primeira vista, pareceria mais lógico que tivesse sido ao contrário, que embute se tivesse reduzido a bute, como embora se reduziu a bora. Mas a verdade é quase sempre contraintuitiva, como se sabe [2] e a minha engenhosa proposta (gaba-te cesto…) é que o bute, já usado como interjeição, tenha ganhado o ditongo nasal inicial por analogia com embora – uma reconstrução de uma pretensa forma anterior, pelo processo conhecido como etimologia popular: “...Se bora vem de embora, bute, que significa a mesma coisa, deverá também ter perdido um em- inicial e a forma “completa” há-de ser embute...”
Até aqui, nada de muito extraordinário. Mas, e como apareceu ali no meio o de? Ir-se embora não tem nenhum de! Mais uma vez, por analogia, creio eu, mas desta vez com outras expressões, também comuns e com o mesmo significado, como ir/dar de frosques ou dar de slaide [3], ou, menos comuns, mas ainda assim com bastante ocorrência, pelo menos quando eu era jovem, ir de avanço ou ir de espiante, por exemplo, essas talvez mais tipicamente lisboetas.
E já agora, à laia de coda e já que estamos em maré de sinónimos de abalar ou ir-se embora em registos menos standard (desculpem-me o anglicismo, sim?), quero registar a expressão também muito comum dar corda aos calcantes e, mais apache do que ela, o velho xalar-se – ou chalar-se, não sei como é melhor escrever.
E é tudo. Ou antes não, falta insistir numa coisa importante: toca a pôr nos dicionários o calão que lá falta, sim? Noutras línguas, estas coisas há muito que estão dicionarizadas. Pois, mas, a nós, faltam-nos ainda o nosso Pierre Perret e o nosso Frédéric Dard…
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[1] Agradeço a Sofia Marsim a informação sobre as entradas do Dicionário da Academia e de A. G. Cunha, que acrescentei ao texto a 28 de junho de 2016. Pela mesma ocasião, retirei a proposta inicial de uma eventual etimologia alternativa, o francês bout, que me pareceu já não fazer sentido.
[2] Senão, seria tão fácil ensinar às crianças ciência como religião e todos sabemos que assim não é…
[2] Senão, seria tão fácil ensinar às crianças ciência como religião e todos sabemos que assim não é…
[3] Presumo que esta também venha do inglês slide, talvez através da gíria do automobilismo.