Tive de traduzir uma vez a expressão inglesa from gate to plate, que significa “desde a produção na quinta até à venda ao consumidor” e, depois de refletir um bocado sobre como manter ao mesmo tempo o significado e o jogo de sonoridades, inventei do prado ao prato. Não era uma tradução muito boa do significado, embora tivesse sobre a expressão traduzida a vantagem de não ter elementos omitidos*; mas era uma boa tradução do jogo fonético, melhor até do que o original, porque entre os dois termos do trocadilho se altera apenas um som e não dois como na expressão inglesa. O meu cliente gostou muito, achou que tinha sido uma boa invenção.
Passado pouco tempo, e por mero acaso, encontrei a expressão na Internet. Verifiquei, pela data de publicação do documento onde ela aparecia, que era anterior à minha tradução. Googlei “do prado ao prato” e descobri que aparecia milhares de vezes online. Não me lembro exatamente de quantas, mas eram muitas (isto foi há cerca de dois anos; hoje, essa pesquisa dá-me cerca de 30.000 ocorrências). Afinal, alguém tinha inventado a expressão antes de mim. Era até possível que tivesse havido várias pessoas a inventarem a expressão antes de mim. Bom, nem por isso eu deixava de a ter inventado também, não é verdade?, mas já não era a mesma coisa…
A expressão do prado ao prato não tem importância nenhuma, mas isto de ser inventado por várias pessoas já se deu com coisas efetivamente importantes. A escrita, por exemplo. Não se sabe se, quando começaram a usar os seus hieróglifos há cerca de 5200 anos, os egípcios os tinham criado a partir da escrita suméria, surgida pouco antes. A escrita chinesa, porém, que apareceu cerca de 2000 anos depois, tem, muito provavelmente, uma origem completamente autónoma. E independente é também, com toda a certeza, a invenção da escrita na região que hoje é o México, há cerca de 2500 anos. Outros exemplos conhecidos de invenções e descobertas independentes de uma mesma coisa são o cálculo diferencial e integral, desenvolvido separadamente por Newton e por Leibniz; e a descoberta do oxigénio, também feita por três pessoas que desconheciam o trabalho umas das outras, Joseph Priestley, Carl Wilhelm Scheele e Lavoisier**.
Mas há muitas mais.
E então, onde quero eu chegar com isto tudo? Bom, não é que eu queira tirar o mérito a quem inventa ou descobre uma coisa qualquer, nada disso, porque para criar tem de haver alguma inspiração e algum trabalho individuais. Mas parece, sobretudo quando constatamos que as datas das invenções e descobertas paralelas são, muitas vezes, bastante próximas umas das outras***, que inventamos o que o nosso tempo, as nossas circunstâncias, enfim, nos põem à frente para inventarmos… Tenho muitas vezes a sensação de que somos sobretudo lugares onde acontecem coisas. Podemos ser um lugar onde acontece uma invenção ou uma descoberta, por exemplo – que, se não acontecer em nós, acontece noutra pessoa qualquer.
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* Falta farm na expressão original, que se deve entender como from [farm] gate to plate, já que farm gate é a expressão normal para dizer “à saída do local de produção”. Price at farm gate, por exemplo, é o “preço no produtor”
** “Eh, pá, até parece que descobriste a pólvora!”, eis o que eu sempre ouvi dizer quando alguém se mostra muito excitado ao descobrir o que todos os outros estão fartos de saber. Mas é uma expressão pouco correta, se não lhe quisermos chamar disparatada: a pólvora não foi descoberta, porque não há pólvora no estado natural... E, se não distinguirmos entre inventar e descobrir, acabamos como o protagonista de uma anedota que há, que, ao ler que o oxigénio foi descoberto em 1774, se interroga sobre como respirariam as pessoas antes disso.
*** Um caso óbvio é o das manchas solares, descobertas independentemente por Thomas Harriot, em 1610; por Johannes e David Fabricius, em 1611; por Galileu, em 1612; e por Christoph Scheiner, também em 1612.
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