Traduzi há alguns anos um texto do filósofo
Lucien Sève em que, para discutir a necessidade de revolução na mudança social,
o autor lança mão da “física das transições de fase mudanças do estado da
matéria, aquilo a que normalmente se chamava mudanças do estado da matéria”.
Para Estaline e outros teóricos marxistas da dialética, “a lei das mudanças
qualitativas «obrigatoriamente bruscas»” deveria ser a mesma para a água e para
as sociedades. Sève aceita esta premissa para a discussão e usa na sua
argumentação contra as ideias estalinistas exemplos da evaporação lenta da água
e dos “estados paradoxais da matéria”.
Acho bem que a discussão das mudanças sociais
e todas as demais discussões éticas sejam feitas com base em demonstráveis, e,
quando possível, em observáveis; mas não faz para mim sentido nenhum que se
pretenda fazer coincidir as leis que regem a matéria e as leis que regem o
comportamento das pessoas, e menos ainda que se baseie em leis da física ou da
química a proposta de que leis devem
reger o comportamento das pessoas.
Ainda assim, e é aqui que eu queria chegar com
esta introdução, gosto muitas vezes de “encontrar” lições para a vida humana na
realidade material não humana à minha volta. As aspas em encontrar são muito
grandes e servem para insistir em que não acredito que se possam deduzir da
físico-química grandes leis morais ou ensinamentos sobre a nossa vida – mas a
matéria dá excelentes metáforas de fenómenos imateriais. Por exemplo: Lembro-me
de que tive, há alguns anos, uma longa discussão epistolar, com um amigo, sobre
os limites da possibilidade de controlo da nossa própria vida; e lembro-me de
que usei nessa discussão uma metáfora que tinha encontrado no livro Tar Baby, de Toni Morrison (embora ela a
usasse com intenções diferentes): a metáfora da “bola que dá voltas à roleta,
movida tanto pelo seu próprio peso como pela força da roda”. Ninguém sabe onde
é que ela vai parar, não é verdade?, mas é fácil de perceber que seja lá onde for,
o seu percurso é parcialmente determinado pelas forças exteriores da impulsão e
do atrito, e parcialmente determinado pelas próprias características do objeto
sobre que agem estas forças – forma, peso, tamanho, etc. “É assim a vida”,
escrevi eu ao meu amigo, “nós somos a bola da roleta.”
Ontem, ao limpar o meu fogão novo (um
excelente fogão a gás de cinco bicos, como há muito eu queria ter), descobri
mais uma metáfora engraçada da importância das características próprias versus a vida que vivemos: ao limpar os
queimadores, apercebi-me de que havia uma relação diretamente proporcional
entre sujidade e potência dos queimadores, que é, curiosamente, inversamente
proporcional ao uso que lhes dou: por muito que use mais os queimadores mais
fracos, estes sujam-se menos – por serem mais fracos, presumo eu; e os
queimadores maiores, que uso menos, sujam-se mais, por serem mais potentes. O
queimador duplo, de alta potência, que praticamente só uso para bifes e que,
por isso, quase nunca uso (porque a vida não está muito para bifes, não é
verdade?…), estava bastante mais sujo que os outros todos.
Então, acham que vos serve para alguma coisa a
metáfora dos queimadores do fogão?
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