A
adoção de uma atitude racionalista implica predispor-se a mudar de
crenças a qualquer momento e passar às vezes a defender o que antes se atacou,
em função, claro está, da força dos argumentos e provas que vão sendo
apresentados numa discussão. Se há pessoas a quem causa grande desconforto
aceitar a volubilidade das suas convicções e que preferem, para o evitar,
perfilhar certezas perenes, para outras ‒ para mim ‒, essa instabilidade é a
vantagem não só epistémica como moral do racionalismo.
Para banalidade, não está mal. Mas é uma
introdução apenas, espero que o que se segue seja menos corriqueiro. Já mudei
de campo duas vezes na discussão da influência da língua sobre o pensamento.
Quando comecei a interessar-me pela questão e a refletir sobre ela, tomei, de
uma maneira algo ingénua, o partido dos chamados whorfianos, o relativismo linguístico: as categorias linguísticas, pensava eu, como muitos pensam, introduzem cortes
no continuum da realidade e a maneira como percebemos e concebemos o mundo é,
por isso, determinada pela língua que falamos. O bilinguismo, dizia eu ‒ e
sentia-o ‒, resulta numa cisão da personalidade: é-se de uma maneira numa
língua e de outra maneira noutra.
Quando comecei a estudar linguística, comecei
a compreender melhor o que, sob a superfície da diferença, há de invariável nas
línguas todas. Comecei também a compreender a ingenuidade da abordagem de Whorf
e a dar-me conta da enorme falta de observáveis que a sustentassem. A pouco e
pouco, de whorfiano ingénuo, fui-me tornando um antiwhorfiano com cada vez mais
(boas) razões para o ser. Isto resultou em centenas de discussões acaloradas,
em conversas de café, jantares de amigos e situações afins: o discurso
whorfiano é extremamente sedutor e, o whorfianismo, embora tivesse praticamente
desaparecido das teorias e dos trabalhos de linguística, tinha-se, pelos
vistos, tornando senso comum entre um vasto grupo de gente educada.
Surgiu depois, porém, uma vaga de neowhorfianos, que, ao contrário de Whorf e de muitos
whorfianistas clássicos, começou a fazer trabalho experimental sério e a
defender uma versão fraca da teoria, muito mais razoável que as suas primeiras
formulações. Estes neowhorfianos têm vindo a trazer à discussão argumentos mais
sólidos que os que até aí tinham sido apresentados a favor da hipótese de influência da língua
na cognição e eu predispus-me a aceitar que o léxico possa, de facto,
determinar certas capacidades ou hábitos cognitivos. Mas claro, não o aceito
sem certas reservas: creio, por um lado, que, em muitos casos, está ainda por
demonstrar essa influência; e não sei até que ponto é que é a influência do
léxico se pode sempre considerar uma influência propriamente linguística.
Já o disse aqui uma vez,
a propósito da constatação de uma relação entre língua materna e discriminação
de cores ao nível percetivo[1]:
[O léxico] é a parte menos linguística da língua. O léxico, comparado com as estruturas sintático-semânticas e sobretudo as estruturas fonéticas, é facilmente alterável, e em qualquer língua se podem introduzir, com grande rapidez e sempre que seja necessário, novas palavras para dizer novas coisas (também cores…). Além disso, o rigor na classificação das cores (...) pode variar muito de indivíduo para indivíduo entre os falantes de uma mesma língua – pode haver quem saiba o que é azul ultramarino e quem não o saiba e seria interessante comparar como afeta a cognição das cores a maior ou menor educação cromática, digamos assim…
Ao contrário das estruturas morfossintática e
fonético-fonológica, o léxico muda com facilidade, tanto na sua disponibilidade
na língua como na utilização que cada um dele faz, e é ao nível do léxico que
as línguas mais interagem umas com as outras, e com mais facilidade, importando
e exportando palavras. Por ser a menos linguística parte da língua, ou a mais
superficial, se preferirem, o léxico é o que de menos próprio tem cada língua.
Não considero, por exemplo, que seja fator definidor do português ter as
palavras unto ou malandrice, mas é com certeza definidor do português ter a
possibilidade de flexionar em pessoa o infinitivo, ter uma estrutura silábica
independente da estrutura morfológica, ter redução de determinadas vogais
átonas, etc[2]. Bem vistas as coisas, a tese neowhorfiana não parece ser que a
língua influencia a conceptualização e a perceção, mas antes que o hábito de
usar determinadas palavras o faz. Ora isto é, com rigor, independente da língua em sentido estrito.
Pode haver argumentos fortes a favor da hipótese de que a interiorização de um conceito lexicalizado pode influenciar determinadas capacidades ou perceções. Por exemplo, que existe uma ligação direta entre as categorias cognitivas de cor e as palavras usadas para as descrever e que, por isso, as pessoas que falam línguas em que se distingue azul e verde conseguem mais rapidamente perceber mais nuances nessa zona do espetro das cores. Mas a variação do léxico não se faz só de língua para língua. Ela faz-se também no interior de uma língua, como a imagem abaixo mostra de forma claríssima; donde que, quando se estuda a influência da “língua” na perceção das cores, um dos primeiros testes de controlo a fazer para saber até ponto essa influência é efetivamente da “língua”, em sentido estrito, devia ser estudar a influência nessa perceção de léxicos diferentes interiorizados por falantes de uma mesma língua. Parecerá evidente, mas nunca tal vi. Se se faz, faz-se muito pouco. Obviamente, a temática das cores é um só exemplo, talvez o mais imediato, e o mesmo se aplica a outros campos lexicais.
Sobre a figura: Não consigo saber qual é a origem desta imagem que circula pela Internet. As versões com melhor definição estão escritas em russo, pelo que talvez seja uma adaptação de uma imagem russa, não sei. A imagem pretende dar conta das diferenças de género da perceção das cores (também não descobri ainda em que estudo ou estudos se baseia), mas não é para esse fim que a uso, mas para demonstrar o facto simples de que duas pessoas que falem a mesma língua podem ter léxicos diferentes, e com diferentes graus de sofisticação, para descrever as cores – e outras categorias cognitivas. Os nomes de cores que aparecem à esquerda não são, muitas vezes, as suas designações mais comuns (parecem ser antes uma designação intuitiva baseada sobretudo em frutos e plantas), mas todas estas cores têm nomes que, apesar de relativamente correntes, estão longe de ser conhecidos por toda a gente. Agora, para verem que sou, como afirmava no início, um racionalista efetivamente aberto a ser convencido do contrário do que penso, vou dar aos neowhorfianos argumentos (que, curiosamente, nunca vi por eles referidos – o que não quer dizer que o não tenham feito, claro está) para defender impactos prováveis na perceção de fatores profundamente linguísticos e que apenas se podem adquirir relativamente cedo, como sejam a estrutura fonológica da(s) língua(s):
Sobre a figura: Não consigo saber qual é a origem desta imagem que circula pela Internet. As versões com melhor definição estão escritas em russo, pelo que talvez seja uma adaptação de uma imagem russa, não sei. A imagem pretende dar conta das diferenças de género da perceção das cores (também não descobri ainda em que estudo ou estudos se baseia), mas não é para esse fim que a uso, mas para demonstrar o facto simples de que duas pessoas que falem a mesma língua podem ter léxicos diferentes, e com diferentes graus de sofisticação, para descrever as cores – e outras categorias cognitivas. Os nomes de cores que aparecem à esquerda não são, muitas vezes, as suas designações mais comuns (parecem ser antes uma designação intuitiva baseada sobretudo em frutos e plantas), mas todas estas cores têm nomes que, apesar de relativamente correntes, estão longe de ser conhecidos por toda a gente. Agora, para verem que sou, como afirmava no início, um racionalista efetivamente aberto a ser convencido do contrário do que penso, vou dar aos neowhorfianos argumentos (que, curiosamente, nunca vi por eles referidos – o que não quer dizer que o não tenham feito, claro está) para defender impactos prováveis na perceção de fatores profundamente linguísticos e que apenas se podem adquirir relativamente cedo, como sejam a estrutura fonológica da(s) língua(s):
No seu livro Musicophilia (London: Picador,
2008) Oliver Sacks refere (p. 136) um estudo de Diana Deutsch et al.[3], sobre
a incidência de ouvido absoluto[4] em duas populações de estudantes de música:
“Entre estudantes que tinham começado a receber educação musical entre os 4 e os 5 anos, (…) cerca de 60% dos estudantes chineses [do Conservatório Central de Música de Beijing] obedeciam ao critério de ouvido absoluto, ao passo que só 14% dos estudantes dos Estados Unidos, falantes de línguas não tonais, obedeciam aos critérios.” Entre os que tinham começado a receber educação musical entre os 6 e os 7 anos, os números dos dois grupos eram proporcionalmente mais baixos, cerca de 55% e 6%. E entre estudantes que tinham começado a receber educação musical ainda mais tarde, com 8 ou 9 anos, “cerca de 42% dos chineses obedecia aos critérios, ao passo que nenhum dos estudantes falantes de línguas não tonais dos Estados Unidos o fazia”. Não havia diferenças de género em nenhum dos grupos. Esta patente discrepância levou Deutsch et al. a conjeturar que, “se lhes for dada essa oportunidade, as crianças jovens podem adquirir ouvido absoluto como característica do discurso, transportando-o depois para a música.”
O fator
que aqui está em causa é a tonalidade do chinês, isto é, o facto
de uma mesma sílaba dita com diferentes “melodias” (ascendentes, descendentes…)
ter diferentes significados. Se se puder confirmar que a competência tonal na
língua pode influenciar a capacidade de reconhecer altura absoluta de um som
musical, aí sim, temos verdadeira influência da língua nas capacidades
cognitivas de uma pessoa. Now, you’re
talking, como diz o outro.
_______________
[1] Ver, por exemplo, o estudo de Jonathan
Winawer et al. cujo resumo está disponível aqui;
e também os outros estudos que o referem e para os quais há links disponíveis
ao fim da mesma página.
[2] Embora nenhuma destas caraterísticas seja
exclusiva do português, note-se. Não considero aqui definidores os traços
exclusivos, até porque não sei se tal coisa existirá, mas sim a maneira única
como se agrupam traços que existem também noutras línguas.
[3] “Absolute pitch among American and Chinese
conservatory students: prevalence differences, and evidence for a
speech-related critical period” in Journal of the acoustical society of America
119(2) (2006), pp. 719-722
[4] Ouvido
absoluto é a capacidade de reconhecer a altura absoluta de um som e, por
conseguinte, de o situar imediatamente na escala standard: “o meu pai assoa-se
em lá”.
[O texto foi revisto e aumentado a 12 de julho de 2023]
[O texto foi revisto e aumentado a 12 de julho de 2023]
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