1. O que está ele
a dizer?
Provavelmente, acontece-vos o mesmo: quando
apresento a alguém uma cantora ou um cantor que cante em dinamarquês ou sueco,
por exemplo, fazem-me frequentemente um comentário do tipo: «É bonito, sim
senhor, apesar de não perceber nada do que está a cantar…»
Acho isso muito
curioso. As mesmas pessoas nunca fazem esse comentário, se a canção for em
inglês, francês, italiano ou espanhol, por muito que (eu sei) na maior parte
dos casos também não façam a menor ideia do que é cantado nessas línguas. Seria
interessante estudar que estranha programação mental nos leva a organizar a
alteridade de tal maneira que aceitamos não compreender as letras das canções
nas línguas que ouvimos com mais frequência e estranhamos a incompreensão se as
canções forem cantadas numa língua menos habitual – desde que não seja exótica,
isto é, radicalmente outra. É que (provavelmente, acontece-vos o mesmo), se a
canção for em chona, tagalo ou aimara, ninguém faz o mesmo comentário!
2. Música de que
mundo?
Outra questão que
merece escrutínio moral é a da chamada música do mundo – ou world music, se
preferirem (estou convencido de que se usa mais, no discurso em português, a
expressão original inglesa que a sua tradução em português, mas não tenho a
certeza…).
Não tenho nada
contra chamar-se música do mundo a projetos expressos de fusão de música de todos os
lugares do mundo. É, muitas vezes, música que não me agrada por aí além, mas,
enfim, não vejo que chamar-se assim tenha implicações morais. O que tem
implicações morais e me desagrada profundamente é a instituição da categoria
música do mundo para referir, pura e simplesmente, toda a música que não venha
de países anglo-saxónicos ou não seja pop rock cantado em inglês. E é assim que
se usa hoje a expressão: um grupo alemão que cante em inglês não é world music,
como não é world music a música country americana – mas um cantautor alemão é
quase sempre categorizado como world music e a pop andina de grande público também.
Por um lado, a classificação estabelece um padrão discriminatório de
“normalidade”, amalgamando tudo o que sai fora dessa “normalidade”, quase sempre
sem nenhum critério que não seja a sua origem geográfica; por outro lado, para
sofisticar a discriminação, reserva uma classificação rica, com uma quantidade
enorme de subgéneros, para a música que não é world music: a soul music
divide-se em Motown soul, Southern soul, Northern soul, Memphis soul, New
Orleans soul, Chicago soul, Philadelphia soul, psychedelic soul, blue-eyed soul
e nu soul (pelo menos), mas um an dro bretão ou uma polca da Carélia são ambos…
world music.
[Evidentemente, há mais quem ache que a expressão world music é ofensiva.]