26/10/12

Das fontes inesgotáveis de carne ou Les grands esprits se rencontrent

Traduzo um texto do grande Alphonse Allais [1]:
Quando ouvi a história, veio-me aos lábios um sorriso incrédulo e vieram-me avivar o olhar pequenos lampejos de troça. Cap, o meu interlocutor, não reagiu. Limitou-se a chamar o empregado do bar e a pedir “Two more” que é a maneira americana de dizer: “Pode servir-nos outra vez a mesma coisa” ou, de forma mais clara, “Outra rodada”. O empregado serviu-nos mais dois mint-julep.
Conheço o capitão Cap há já bastante tempo. Aconteceu-me muitas vezes encontrá-lo num desses numerosos american bars que há nas imediações da nossa Opéra nacional e da Igreja da Madaleine. Estou acostumado às suas hipérboles e às suas lérias, mas esta história, sinceramente, ultrapassava os limites do gracejar canadiano. (Os canadianos, encantadoras crianças, aliás, são, por assim dizer, os gascões transatlânticos e Cap tem muito do caráter canadiano.) Contava-me Cap, com toda a serenidade, que tinham acabado de descobrir, a seis milhas de Arthurville (na província do Quebeque) uma mina de carne assada a céu aberto! Eu tinha ouvido bem e é isso mesmo que o leitor acaba de ler: uma mina de carne assada a céu aberto! Uma mina de meat-land (terra de carne), como eles dizem por lá.
Resolvi tirar a coisa a limpo e, na manhã seguinte, dirigi-me ao Consulado Geral do Canadá, no Nº 10 da Rue de Rome. Na ausência do Sr. Fabre, o amável cônsul, fui recebido – com toda a gentileza, há que o dizer – pelo seu filho Paul e pelo ilustre Maurice X ..., um jovem diplomata de grande futuro.
– A meat-land! – exclamaram os dois cavalheiros. – Mas não há nada mais verdadeiro! Como? Não acredita na meat-land?
Tive de confessar o meu ceticismo. Os dois senhores tiveram a amabilidade de me informar sobre o assunto e fiquei a saber que o capitão Cap não tinha de modo algum exagerado.
Nas proximidades de Arthurville, existia, em plena floresta virgem (era virgem nessa altura), uma enorme ravina em forma de arena, formada por rochas íngremes e atapetada (como os nossos Alpes) de milhares de espécies de ervas aromáticas, tomilho, alfazema, louro, etc. Esta floresta era habitada por veados, antílopes, corços, coelhos, lebres, etc. Ora, num dia muito quente e extremamente seco, começaram a arder essas grandes matas e o fogo rapidamente alastrou por toda a região. Assustados, os pobres animais fugiram, procurando abrigo contra a catástrofe. E ali estava o barranco, com suas rochas escarpadas, mas incombustíveis. Os animais acreditaram ter encontrado a salvação! Não tinham contado com a enorme temperatura gerada pelo monumental incêndio. Veados, antílopes, corços, coelhos, lebres, etc., saltaram aos milhares para o que acreditavam ser a salvação e o que encontraram foi a morte por asfixia.
Os animais não só morreram, como também assaram. Enquanto a temperatura não voltou ao normal, toda esta carne ficou a cozer no seu próprio molho (como se faz no processo de cozedura a que se chama estufado). As matérias pesadas – ossos, chifres, pele – foram-se depositando devagar no fundo deste tacho gigante. A gordura, mais leve, veio ao de cima, e solidificou à superfície, formando, assim, uma camada protetora. As ervas aromáticas, por outro lado (como as dos nosso Alpes), temperaram este pâté e fizeram dele um delicioso petisco.
Há que acrescentar que será instalado em breve em Paris, no vasto edifício na esquina da Rue des Martyrs com o Boulevard Saint-Michel, um entreposto de comercialização de meat-land. Está a ser criada uma empresa para exploração desta substância única. Voltaremos a este assunto, uma questão de primeiríssima ordem, para a qual chamamos desde já a atenção das pessoas de economia mais modesta.
Agora, mais carne que uma mina de carne tem um planeta de carne. É muito possível que Carl Sagan nunca tenha lido Allais. Muitas vezes, como diz o provérbio francês, os grandes espíritos encontram-se [2].


Ah, a (des)propósito: como talvez saibam, foi recentemente descoberto um planeta "de diamante". Os trocadilhos sobre como essa descoberta nos veio enriquecer são inevitáveis, mas a verdade é que, como há sempre alguém a recordar-nos, os diamantes não se comem...
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[1]  Alphonse Allais, Le Captain Cap, 1902. Trata-se do Capítulo III. – Em que se descobre a existência de Meat-land: por outras palavras, terra de carne, rica mina de carne assada a céu aberto, localizada perto de Arthurville (província do Quebeque). O original francês está disponível na Wikisource. Podem ler uma biografia de Alphonse Allais na Wikipédia e, se souberem francês, proponho-vos duas páginas com textos do grande humorista, uma com alguns dos seus achados "líricos" e outra com vários contos.
[2] Peço desculpa a quem não saiba inglês, mas não traduzo o vídeo; senão, nunca mais publico este post... Além do filme, existe um site sobre o Planeta de Carne, com toda a sua história.

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